segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Coalizão de ONGs com agronegócio é inédita, as 6 propostas nem tanto

 

* Ecio Rodrigues

Numa articulação inédita, um grupo de organizações não governamentais (entidades que costumam ser execradas pelo governo federal) se uniu a um pool de empresas do agronegócio (tratadas, por sua vez, com muito carinho pelo Ministério do Meio Ambiente) para apresentar propostas direcionadas a conter o desmatamento na Amazônia.

Intitulado “Ações para a Queda Rápida do Desmatamento”, o documento resultante dessa articulação, assinado por mais de 200 organizações e indivíduos que representam setores do agronegócio; instituições financeiras; organizações não governamentais ou da sociedade civil; acadêmicos e pesquisadores, aponta 6 medidas – que, entretanto, são decepcionantes.

Antes das críticas, importa reconhecer o esforço realizado por esses atores sociais ao se articular no âmbito de um movimento autodenominado (de forma um tanto pomposa) “Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura”.

Não há dúvida que o concerto entre atores e agentes econômicos proeminentes no cenário amazônico (sem a participação deletéria do governo federal), com o fim de discutir medidas para refrear a destruição florestal na região, se reveste de grande significado e é digno de reconhecimento.

Porém, e lamentavelmente, as 6 propostas que resultaram da coalizão decepcionam, diante do seu elevado grau de obviedade, e também porque reforçam erros que são repetidos há mais de 30 anos, com exageros que dificultam ou inviabilizam a execução das medidas sugeridas.

São propostas que, em suma, representam muito mais do mesmo. Senão vejamos.

Dentre as 6 ações alvitradas, logo de cara a primeira delas fornece uma ideia do hiato de soluções. Descrita como “Ação #1: Retomada e intensificação da fiscalização, com rápida e exemplar responsabilização pelos ilícitos ambientais identificados”, a proposta insiste num diagnóstico muito equivocado: o de que falta dinheiro para fiscalização.

Não existe demanda por “retomada da fiscalização”, posto que jamais o país deixou de desperdiçar recursos públicos em demasia numa atividade que fornece retorno questionável para a sociedade, a despeito de seu elevado custo.

Fiscalizar é exercitar o poder de polícia para intimidar o produtor rural, que, como faz há décadas, e muitas vezes amparado pela legislação, voltará a investir no desmatamento e na queimada depois da passagem do comboio da operação policial – que tanto agrada a imprensa mas é de inutilidade amplamente comprovada pelas estatísticas.

A proposta traz ainda o devaneio – comum, diga-se – de que a responsabilização deve ocorrer sob “rapidez” (o que é impraticável, diante dos procedimentos exigidos pela legislação), tudo bem distante da realidade, e a insinuação de que existe impunidade, o que carece de comprovação. Mas a coisa piora.

Devaneio maior aparece na “Ação #2: Suspensão dos registros do Cadastro Ambiental Rural que incidem sobre florestas públicas e responsabilização por eventuais desmatamentos ilegais”.

Assusta imaginar que um grupo tão representativo acredite, e novamente sem comprovação científica, que exista a possiblidade de o CAR admitir a inscrição de terras públicas (tais como unidades de conservação e terras indígenas) como propriedade particular.

Além do fato de a tecnologia do geoprocessamento não ensejar mais nenhuma dúvida quanto à localização da terra, o procedimento de regularização fundiária segue um rito demorado e complexo, previsto em leis e regulamentos, sendo impossível que a titulação ocorra sem a devida segurança jurídica.

Continuando, a terceira proposição se refere ao reconhecimento de terras indígenas e à criação de 10 milhões de hectares de áreas protegidas na forma de unidades de conservação – e tudo isso dentro do prazo infantil de 90 dias.

A criação de áreas protegidas por lei certamente contribui para reduzir a superfície de terras cobertas por florestas disponível para desmatamento; contudo, e como evidencia uma série de estudos, essa medida não alcança o desmatamento e as queimadas que ocorrem em mais de 50% do território, ocupado por propriedades particulares.

As demais ações sugeridas seguem o mesmo princípio de negação do desmatamento e da queimada como decisão de investimento do produtor. Ora tratado como egoísta, ora como perdulário, o produtor nunca é visto como um investidor que queima e desmata porque o ambiente de negócios (sem trocadilho) é favorável à criação de boi.

Enfim, percebe-se com facilidade que as 6 propostas fogem do problema e, pior, estão contaminadas pela ideia estúpida de que a grilagem de terras é realidade corriqueira na região.  

O mais triste é constatar que se desperdiçou uma grande oportunidade para apontar a causa real da destruição da floresta na Amazônia: a criação de boi.

Longe de colocar o guiso no pescoço da pecuária extensiva, a coalizão tergiversa em indiretas para o governo federal, não enxergando que a solução é barata e simples. Bastaria que o FNO suspendesse, por pelo menos 5 anos, o financiamento concedido à atividade da pecuária na Amazônia.

Embora seja medida que exija coragem e cause desgaste político, a suspensão do crédito subsidiado para a criação de boi traria claridade ao céu cinza da Amazônia.

 

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.

 

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