domingo, 21 de fevereiro de 2021

Ampliar a resiliência dos rios é o caminho

* Ecio Rodrigues

Publicado originalmente em 05/04/2015, esse artigo discute a recorrência de eventos extremos (seca e alagação) no rio Acre. Se antes o intervalo temporal entre uma alagação e outra levava a sociedade e o poder público a esquecer da anterior, nos últimos 15 anos esse intervalo vem diminuindo, e os eventos extemos ocorrem de maneira cada vez mais próxima no tempo. Ou seja, não há razão para que os gestores públicos estaduais e municipais não planejem ações para minimizar as consequências. A saída está no aumento da resiliência dos rios, como se afirmou naquela época.

 

Diante das novas características do clima (embora muitos não acreditem, é fato que o clima não é o mesmo), com consequências drásticas no regime de chuvas (é fato que a distribuição das chuvas não é a mesma), e, por conseguinte, na vazão dos rios (é fato que a vazão dos rios não é a mesma), parece razoável discutir as novas atribuições que se impõem às administrações públicas.

As estatísticas demonstram, com elevado grau de precisão, que, na Amazônia, o equilíbrio hidrológico dos rios atingiu outro patamar, o que significa que poderá haver, a cada ciclo completo de duas estações climáticas (verão e inverno para os amazônidas), excesso de água nas cheias e carência na seca.

Ocorre que (para usar o exemplo do rio Acre) desde o final da década passada – ou seja, a partir de 2009, quando as cotas desse curso d’água estacionaram num mínimo em torno dos 6 metros no período das cheias –, as alagações e secas extremas têm sido recorrentes. Mais grave ainda, as alagações estão batendo recordes, e as secas devem seguir esse caminho.

Essa realidade precisa ser assumida pela sociedade e, acima de tudo, pela gestão pública. Os técnicos que planejam as ações governamentais, na esfera estadual e municipal, devem contemplar uma perspectiva crucial: os canais de escoamento superficial das águas (rios, igarapés e outros) passaram, ao longo dos últimos 50 anos e com muito mais intensidade nos últimos 20, por um processo ininterrupto de degradação.

Essa degradação é evidente na beira dos rios, num tipo especial e importante de formação florestal – a mata ciliar.

O desmatamento da mata ciliar ocorre por várias razões, mas, sobretudo, para dar lugar à criação de gado ou simplesmente para liberar o trajeto que o boi faz até o rio, no intuito de beber os 36 litros de água que consome diariamente.

Sem a barreira fornecida pela mata ciliar, todos os anos o rio recebe toneladas de areia, terra preta e barro (para citar os principais sedimentos) – uma quantidade que não tem vazão para transportar e que termina no fundo do leito, reduzindo o calado e causando o que os técnicos chamam de assoreamento.

Formar barreira para impedir o assoreamento e, desse modo, melhorar a quantidade e a qualidade da água que flui no rio é uma das funções mais significativas da mata ciliar, mas não a única. Há que se considerar sua importância para a fauna, tanto da terra quanto do rio, bem como os efeitos paisagísticos que proporciona.

Não à toa as funções desse tipo especial de floresta estão previstas e amparadas numa série de dispositivos legais, inclusive no Código Florestal de 2012.

Reforçam a exposição dos rios à degradação a ampliação da densidade demográfica, a demanda por água potável e, talvez o mais grave, as insistentes taxas de desmatamento medidas ao longo da bacia hidrográfica.

Com baixa resiliência, o rio perde a capacidade de assimilar e de reagir, de modo rápido, às flutuações extremas de vazão. A perda de resiliência é, sem dúvida, o efeito mais perverso para os rios submetidos a um processo longo e ininterrupto de degradação.

A ampliação da resiliência dos rios deve ser promovida de forma prioritária pela política pública, e a boa notícia é que existe capacidade técnica para isso. A restauração florestal da mata ciliar e o manejo dessa floresta para aumentar a quantidade da água que flui no rio e diminuir o seu nível de turbidez são procedimentos dominados pela engenharia florestal.

A ampliação da resiliência dos rios pode evitar, no futuro, a drástica e caríssima alternativa da canalização do canal com concreto armado. Mas tem que ser já.

 

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Rio Acre vai alagar? Novamente a ladainha

 * Ecio Rodrigues

Seria demais acreditar que jornalistas com pouca formação pudessem esclarecer para a população o que levou o igarapé São Francisco, um dos três principais tributários da margem esquerda do rio Acre e que atravessa toda a capital, Rio Branco, a transbordar e deixar mais de 400 famílias dentro d’água.

Por outro lado, é praticamente impossível conseguir uma nota técnica de um órgão oficial ou a opinião de algum perito que explique de que maneira esse evento atípico deixou alagados alguns bairros.

No final das contas, toda a mídia local, sem exceção, mais uma vez, deu início à já usual ladainha de início de ano, resumida na pergunta sem resposta: o rio Acre vai alagar?

Na falta de autoridade pública com estatura técnica confiável para informar e passar alguma tranquilidade, a população, por seu turno, levanta hipóteses e acaba por acreditar no que melhor lhe convier. Duas delas chamam a atenção.

A primeira sugere que o rio Acre é o culpado. Com o aumento da vazão e, por conseguinte, do nível das águas, o rio não teria suportado o volume de água que recebe na foz do São Francisco.

Uma hipótese que exige conhecimento detalhado de hidráulica, mas que, de imediato, pode ser rechaçada, diante da série histórica de estatísticas que demonstram aumento da cota do rio Acre até transbordamento sem refluxo em igual proporção, nem no igarapé Batista nem no São Francisco.

Há relatos de que alguns alagados conseguiram pescar tambaqui e outros peixes nas águas que chegaram em suas casas. Esse fato fez surgir a segunda hipótese, de que teria havido rompimento de barragens em açudes localizados na cabeceira do São Francisco.

De fato, como a nascente do igarapé se situa na região de influência da rodovia AC-090 (Transacreana), o trajeto rural do São Francisco, antes de chegar à zona urbana de Rio Branco, passa por uma região repleta de açudes.

Entretanto, e ainda que não existam dados oficiais sobre a quantidade de açudes que poderiam, uma vez desbarrancados, despejar água, barro e, claro, peixes, no São Francisco, essa possibilidade também deve ser afastada – pois fere alguns princípios da hidráulica, uma vez que o igarapé teria que passar por intenso assoreamento e ter sua capacidade de carga hídrica reduzida de forma substancial, e tudo ao mesmo tempo.

Ademais, a ausência de marcas de lama depois da vazante, nos pontos de alagação, é um claro indicativo de que não foi barro de açude.

Para chegar a uma resposta, seria necessário um estudo aprofundado, a fim de investigar se algo de novo surgiu na calha do São Francisco, a jusante das áreas inundadas, reduzindo a seção transversal do igarapé e criando obstáculo ao fluxo de água que deveria chegar até a foz, no rio Acre.

Quanto à ladainha de início de ano (“Vai alagar?”) – que se completa com a do meio do ano (“Vai secar?”) –, na verdade, essas perguntas não levam a lugar nenhum. Não apenas o São Francisco, mas todos os tributários do rio Acre apresentam grave comprometimento da mata ciliar.

Estudos recentes demonstram que mais da metade da mata ciliar do rio Acre foi destruída – mesmo que se considere tão somente a faixa mínima de 30 metros de largura fixada pelo Código Florestal.

Seria preciso reformular as perguntas para informar à população sobre o planejamento do governo e da prefeitura, a fim de: (a) restaurar a vegetação original da mata ciliar que foi desmatada; (b) realizar a limpeza dos leitos; (c) dragar as calhas; e (d) remunerar o produtor pelo serviço de manejo da mata ciliar para produção de água.

Essas quatro ações ampliariam exponencialmente a resiliência na bacia hidrográfica.  O melhor é que encontram amparo legal e contam com fundos públicos para se converterem em rotina administrativa municipal.

Assim, no ano que chover muito e no que chover pouco, os efeitos de um e outro evento climático serão mais bem assimilados pelos igarapés e pelo rio.

 

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Extinguir ICMBio é retrocesso perigoso

* Ecio Rodrigues

O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, conhecido pelo acrônimo ICMBio, foi criado em 2007 e, ainda que sua denominação não explicite, tem a missão institucional de gerir o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, SNUC.

A criação de um órgão nos moldes do ICMBio era reinvindicação antiga. Desde a aprovação da Lei do SNUC (Lei 9.985/2000), havia demanda social por um órgão com a incumbência de gerenciar o sistema e se encarregar das unidades de conservação instituídas pelo governo federal, que hoje somam mais de 800, distribuídas no território nacional.

Essa demanda, por sinal, surgiu a partir da aprovação, em 1981, da Política Nacional de Meio Ambiente, que conferiu prioridade à criação de áreas legalmente protegidas do modelo de ocupação produtiva que acontece fora delas.

Implantadas por ato específico, que define seus limites, as unidades de conservação sujeitam-se a regras de proteção diferenciadas. Dessa forma, gozam de relativa imutabilidade, sendo muito difícil – e desgastante, do ponto de vista político – desconstituir uma UC ou mesmo alterar seu perímetro.

As atividades desenvolvidas pelo ICMBio se voltam, em sua quase totalidade, para garantir a proteção conferida pela legislação às UCs, impedindo desmatamento, queimadas, invasões e outras ameaças. Desse modo, os servidores do órgão concentram grande esforço técnico na elaboração de relatórios de vistoria, inclusive para atendimento de instituições de controle, como as procuradorias.

Além da fiscalização, dificultada pela complexidade geográfica e dispersão das UCs, o órgão tem ainda a atribuição – não cumprida, diga-se – de introduzir a unidade de conservação na dinâmica econômica local.

Fazer valer a função econômica do ativo ambiental presente em toda a extensão territorial que integra o SNUC tem sido, ao longo dos quase 14 anos de existência do ICMBio, o principal déficit do órgão perante a sociedade.

O ICMBio apresenta limitações de ordem técnica e administrativa que impedem uma atuação propositiva, no que se refere à introdução de alternativas econômicas sustentáveis para a produção de riqueza nas terras ocupadas pelas UCs – que correspondem, no caso da Amazônia, a mais de 10% das terras cobertas por florestas.

Por outro lado, há uma sinergia impressionante dos analistas ambientais da autarquia com as atividades de fiscalização – as quais, sem embargo, e como mostra a experiência, só trazem resultados de curto prazo, sendo inócuas no médio e no longo prazo.

No empenho para fiscalizar uma gigantesca extensão territorial, ao tempo em que deixa de lado o fomento a alternativas econômicas que transformariam as UCs em centros de negócios sustentáveis, está o – digamos assim – calcanhar de Aquiles do ICMBio.

Um ponto fraco visível e que originou a ideia, estapafúrdia por suposto, de que existe sobreposição de atividades entre o ICMBio e seu órgão de origem, Ibama, este reconhecido por atuar quase que exclusivamente na fiscalização.

Raciocínio tosco que foi reforçado com a introdução de algumas UCs no PPI (Programa de Parceria de Investimentos), a fim de que a iniciativa privada logre preencher a lacuna deixada pelo ICMBio, relacionada ao uso econômico dessas áreas.

Obviamente, a entrada de capital nas UCs e, mais importante, a possibilidade de gerenciamento por parte de empresas especializadas são medidas oportunas e necessárias, diante da flagrante inépcia estatal para produzir riqueza em qualquer setor da economia.

Da mesma forma, a expertise do Ibama, que conta com mais de 30 anos de experiência em fiscalização, não pode ser descartada.

Contudo, tais constatações jamais devem levar à conclusão de que não existe demanda para a existência de um órgão estatal nos moldes do ICMBio.

Pode-se discutir sua natureza jurídica, uma vez que o formato de autarquia traz entraves – mas não se pode esquecer a importância do órgão na gestão do SNUC.

Deixar a fiscalização por conta de peritos – no caso, os do Ibama – e se empenhar em transformar os ativos ambientais presentes nas UCs em riqueza, monitorando os contratos de PPI e levando a experiência para as áreas menos atrativas ao empresariado: esse deveria ser o foco da instituição que renascer da crise.

Extinguir o ICMBio está longe de ser a decisão mais sensata. Ao contrário, este é o momento para o órgão mudar de nome e de identidade, passando a se dedicar à transformação das UCs em laboratórios da nova economia de baixo carbono, ou da bioeconomia, como preferem os planejadores do próprio governo federal.

Por sinal, não parece contraditório pregar a saída pela bioeconomia na Amazônia e ao mesmo tempo extinguir o ICMBio? Pois é.

 

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela UnB.

 

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

77% dos brasileiros querem mais unidades de conservação na Amazônia

 * Ecio Rodrigues

Pesquisa encomendada pela CNI (Confederação Nacional da Indústria), realizada em âmbito nacional, indica um alto grau de preocupação dos brasileiros em relação à agenda ambiental nacional, em especial no caso da Amazônia.

Levado a cabo pelo Instituto FSB de Pesquisa, o levantamento contratado pela CNI foi apresentado durante o Fórum Amazônia+21, evento virtual promovido pela Federação das Indústrias de Rondônia, conjuntamente com a Prefeitura de Porto Velho, entre 4 e 6 de novembro de 2020.

Como asseverou a CNI, a pesquisa é reveladora quanto à percepção dos brasileiros em torno do desenvolvimento econômico da Amazônia.

De pronto, é possível constatar que os resultados rechaçam a ideia da intocabilidade da Amazônia – como defendem os ambientalistas mais ortodoxos, ditos preservacionistas, que acreditam na utopia de uma floresta amazônica supostamente despovoada e, por isso, protegida da ação humana.

Com efeito, e segundo a pesquisa, para 95% dos brasileiros, o que beira à unanimidade, é possível realizar a exploração sustentável dos ativos econômicos, de modo a gerar emprego e renda permanentes na Amazônia e, ao mesmo tempo, garantir a conservação da floresta.

Muito embora a premissa pareça um tanto óbvia, o antagonismo entre preservacionismo X conservacionismo contamina os órgãos que integram o Sisnama (Sistema Nacional do Meio Ambiente), comprometendo, por vezes, o licenciamento ambiental, apenas para ficar num dos temas mais polêmicos.

De outra banda, mais de 80% dos brasileiros defendem a exploração da biodiversidade florestal da Amazônia, na condição de rumo e modelo para a economia regional.

A Amazônia é motivo de orgulho nacional para 78% da população, enquanto 60% dos brasileiros se assustam com a destruição do ecossistema florestal e consideram as queimadas uma das maiores ameaças à sustentabilidade ambiental.

Corroborando a exploração econômica sustentável da biodiversidade florestal amazônica, um contingente igual aos que se orgulham da região – ou seja, 77% – defende que o país amplie a quantidade de terras destinadas às unidades de conservação.

E, finalmente, um percentual mais expressivo ainda, correspondente a 83% da população, afirma que a manutenção da floresta amazônica é peça-chave para o desenvolvimento econômico e melhoria da condição de vida no país.

Em síntese, de uma rápida leitura dos resultados, a pesquisa da CNI demonstra categoricamente que: (a) a grande maioria da população se preocupa com a agenda ambiental nacional, sendo que a floresta amazônica está no centro dessa preocupação; (b) existe amplo apoio popular à ampliação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação; e (c) os brasileiros são favoráveis à exploração da biodiversidade florestal da Amazônia, na condição de referência para a economia da região.

Sem embargo, a transformação produtiva claramente demandada pela sociedade e captada pela pesquisa da CNI está longe de se converter em decisão de política pública na Amazônia.

Há uma pedra no meio do caminho da transformação produtiva em direção ao uso comercial da biodiversidade florestal – ou à dita bioeconomia, como querem os planejadores do governo federal: a pecuária extensiva.

Para enfrentar os pecuaristas, grandes e pequenos, e suprimir o crédito público subsidiado a que têm acesso junto ao Basa/FNO, é necessária uma força política hoje inexistente nos 9 estados amazônicos.

A criação de boi em pastagens com baixíssima produtividade predomina em mais de 80% da floresta desmatada, e justamente em localidades em que a economia é mais frágil, como no preocupante exemplo do Acre.

A louvável iniciativa da CNI demonstrou, de maneira contundente, o que a sociedade brasileira quer para o futuro da Amazônia.

Falta transformar essa determinação em imperativo de política pública. Mas, chegar a isso é um desafio que tem se mostrado insuperável.

 

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.