segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Queimadas podem ser abolidas no Acre – se o governo quiser!

 * Ecio Rodrigues

Duas pseudoverdades são reiteradas todas as vezes em que – em reuniões, debates, conferências e outros eventos promovidos pelo governo ou pela sociedade civil – se discute o controle ou a proibição da prática da queimada no Acre.

Essas falsas premissas se referem às alegações de que: (a) o produtor não dispõe de dinheiro para mecanizar; e (b) ele precisa queimar para matar a fome.

Acontece que nenhuma das duas se sustenta, sendo refutadas pelas evidências científicas. Basta dizer que mais de 70% das queimadas anualmente realizadas em território estadual se destinam à renovação de pastos “velhos”.

Ou seja, de regra, o emprego do procedimento não se dá na agricultura nem tampouco para a abertura do primeiro roçado (o que seria o caso, fosse válido o argumento de que o produtor queima para comer), e sim no contexto da pecuária e em pastos já instalados, utilizados e consolidados.   

A ausência de embasamento, todavia, não impede que ambas as asserções repercutam na imaginação da população urbana do estado. A despeito de não manter vínculo com o setor primário, essa população, sabe-se lá por que razões, idealiza o pequeno produtor rural como um tipo que precisa de muito apoio, pois vive isolado, cheio de filhos, passando necessidade – e, ainda assim, sabe-se lá de que maneira, configura peça-chave para o crescimento econômico do Acre.

Um raciocínio um tanto torto, decerto, pelo qual fica subtendido que a produção rural é precária por falta de apoio do governo, contudo, se o produtor puder desmatar e queimar à vontade, o Acre se tornará próspero e rico.

Sob tal abstração, as queimadas vêm sendo toleradas, como se fossem um mal necessário, um sacrifício que os cidadãos têm de fazer – e se dispõem a fazê-lo! – em nome de um suposto (e inalcançável) desenvolvimento econômico a ser promovido pela atividade agropecuária.

Entretanto, estamos na segunda década do século 2021. Sendo bastante indulgente, pode-se afirmar que há pelo menos 30 verões, todos os anos um volume absurdo de fumaça encobre o céu e toma conta da atmosfera entre os meses de julho e setembro – o que leva a temperatura a atingir limites insuportáveis e, ademais, causa infecções respiratórias, arruina a qualidade de vida e mortifica o cotidiano dos habitantes das cidades, para ficar apenas nas implicações sociais.

É razoável que se indague, portanto, em primeiro lugar: qual o prazo para o estado chegar à prometida e esperada prosperidade?

E em segundo: por mais quanto tempo a queimada, conduta tão primitiva que remonta ao século XVII, continuará a ser consentida e a causar tanto mal? 

Se por um lado é infundada a justificativa de que o produtor queima por necessidade, por outro, inúmeras pesquisas comprovam a discrepância entre os altos custos (sociais, econômicos e ambientais) decorrentes das queimadas e os parcos benefícios gerados.

Ou seja, existe base científica suficiente a motivar a erradicação desse malefício da realidade rural do Acre.   

Mas é aqui que entra o “se o governo quiser” do título.

Desde que foi decretada a moratória das queimadas em todo o país, suspendendo, com algumas exceções e prazo inédito de 120 dias, o licenciamento do uso fogo na atividade agropecuária, os governadores da Amazônia estão, como se costuma dizer, com o guiso no pescoço.

Esperava-se uma resposta na mesma dimensão daquela medida, mas as gestões estaduais permaneceram inertes, sob o cômodo juízo de que o assunto das queimadas é coisa para o governo federal.

No Acre, o corolário dessa falta de ação não poderia ser diferente. No dia 20 de agosto completaram-se 5 meses seguidos em que o número de queimadas superou a média (em relação aos registros de abril, maio, junho, julho e agosto) apontada por 24 anos de medições.

Todas as vezes que são ou foram pressionados a proceder de forma enérgica, coibindo definitivamente as queimadas – um encaminhamento possível do ponto de vista científico e demandado pela sociedade –, os gestores ambientais do estado (ao menos nos últimos 30 anos) usaram o pretexto da fome do produtor.

Repetiram tanto essa desculpa que fica parecendo que realmente acreditam que existem 50 mil pessoas passando fome na zona rural do Acre, e que por isso ateiam fogo na terra ano após ano; ou que o produtor que queima pasto consolidado não tem ao seu alcance um trator sequer, seja adquirido por ele próprio, seja cedido pelo governo, pela prefeitura, pelo sindicato, pela cooperativa – a fim de arar o solo, ao invés de incendiá-lo.

Nem tudo está perdido, porém. A julgar pela pressão internacional que impacta o agronegócio brasileiro, o fim das queimadas no Acre será ditado pelo mercado.

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Acordo de Paris impulsiona mercado de carbono

 * Ecio Rodrigues

          Assinado em 2015 por mais de 190 países associados às Nações Unidas, o Acordo de Paris é considerado o mais abrangente e representativo pacto político destinado a minimizar os efeitos do aquecimento do planeta.

Ao aderir aos termos desse acordo, os países signatários, inclusive o Brasil, se comprometeram a cumprir metas de redução dos gases causadores do efeito estufa – leia-se: fumaça – que todos os anos lançam na atmosfera.

Essas metas são revistas e atualizadas anualmente. Porém, para chegar a elas, costumam ser travadas longas e difíceis negociações, a fim de superar um impasse recorrente, que persiste desde a Rio 1992 e que diz respeito à responsabilidade individual com a causa do aquecimento do planeta.

Acontece que a temperatura atual do planeta é consequência da fumaça produzida há muito tempo, uma vez que o dióxido de carbono, por exemplo, o principal agente do efeito estufa, pode permanecer na atmosfera por mais de 100 anos.

Significa dizer que os países desenvolvidos, que levaram a efeito um acentuado processo de industrialização entre o final do século XVIII e o início do XIX, são atualmente os maiores responsáveis pelo aquecimento global.

Para essas nações, admitir essa responsabilidade significa assumir um nível superior de compromissos com a redução, hoje, dos gases expelidos na atmosfera, além de uma parcela maior do dinheiro destinado ao investimento em ações reparatórias do processo de aquecimento.

Por outro lado, os países em desenvolvimento, tais como Brasil, China, Índia e Rússia, embora reconhecendo que contribuem para a ocorrência de temperaturas perigosas num futuro próximo, se recusam a adotar metas rigorosas de redução dos gases, sob a alegação de que, se o fizerem, comprometerão sua industrialização.

A aferição desse ônus – comum a todas as nações e ao mesmo tempo específico para cada uma – é o que emperra as negociações. Responsabilidades diferenciadas representam metas diferenciadas e investimentos igualmente diferenciados nas ações de mitigação dos efeitos do aquecimento do planeta.

Se nos países desenvolvidos a origem dos gases está na indústria, no Brasil vem do desmatamento na Amazônia a maior parcela do carbono expelido aos céus todos os anos.

Diante da dificuldade para se chegar ao estabelecimento das metas ajustadas no Acordo de Paris, bem antes, em 1997, foi celebrado o chamado Protocolo de Kyoto, assinado na cidade japonesa que lhe empresta o nome.

O Protocolo instituiu um sistema de pagamento por serviços ambientais, pelo qual indústrias localizadas em países desenvolvidos e que se encontram no limite da quota liberada de carbono, podem aumentar a quota – e, por conseguinte, sua produção – comprando créditos de emissão de carbono procedentes de países que possuem mecanismos de redução de emissões ou de sequestro de carbono, como áreas de florestas, nesse último caso.

Até 2019 foi comercializado U$ 1,95 bilhão de dólares em créditos de carbono nas bolsas de valores do mundo, em negociações entre entes privados. De um lado, as empresas emissoras e, de outro, os coletores de carbono. O pico de negociações ocorreu entre 2010 e 2013.

Esse montante foi originado em 9.807 projetos, distribuídos entre os países associados à ONU, sendo que mais de 70% deles se destinam à produção de energia elétrica baseada em fontes alternativas; dessas fontes, por sua vez, 50% correspondem à força das águas, ou seja, a usinas hidrelétricas.

Um novo ciclo de crescimento nas negociações de crédito de carbono teve início a partir da assinatura do Acordo de Paris, em 2015, todavia, foi freado com a retração econômica mundial ocasionada pela pandemia de covid-19.

A boa notícia é que, no Brasil, a despeito da inércia do governo na área ambiental nos últimos 2 anos, o mercado de carbono mostra sinais visíveis de expansão em 2021. Mas, nunca é demais lembrar, por aqui, o propósito único dos projetos de crédito de carbono é zerar o desmatamento na Amazônia.

 

* Professor da Universidade Federal do Acre (Ufac), Engenheiro Florestal, Especialista em Manejo Florestal e Mestre em Economia e Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília (UnB).

segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Política pública para a Amazônia não honra acordos com a ONU

 * Ecio Rodrigues

Na esfera ambiental, o Brasil é signatário de uma série de pactos capitaneados pela ONU, todos ratificados pelo Congresso. Entretanto, o governo não consegue transformar em política pública as responsabilidades assumidas perante o mundo e que, direta ou indiretamente, se voltam para o propósito de zerar o desmatamento na Amazônia.

Há quem discuta a legitimidade desses tratados – questionando inclusive o mais importante deles, o Acordo de Paris –, como fizeram os gestores que assumiram o Ministério do Meio Ambiente em 2019.

Pouco importa. A ONU vai exigir o cumprimento das obrigações ajustadas – sendo que, além de dispor de mecanismos de mercado para impor barreiras aos produtos do agronegócio pátrio, os países podem restringir investimentos em ativos brasileiros.

Há que se reconhecer, porém, que concretizar as metas estabelecidas nos acordos internacionais por meio de políticas adequadas à realidade ecossistêmica é empreitada complexa.

Ocorre que a atração de investidores para consumação da ocupação produtiva regional, no período posterior à Segunda Guerra e sob maior esforço público a partir da década de 1970, foi motivada pelo asfaltamento das rodovias e expansão da criação extensiva de gado.

Tida como impulsionadora do processo de ocupação, a pecuária obteve a subvenção de instrumentos de crédito e de fomento – que, ao longo dos últimos 50 anos, garantiram a hegemonia dessa atividade na região.

Sem embargo, a bem sucedida política de consolidação da pecuária mostrou ao mundo sua face perversa, diante do avanço observado, ano após ano, nos índices de desmatamento e, por conseguinte, das acentuadas perdas anualmente acarretadas à biodiversidade florestal.

A alteração desse quadro requer uma profunda readequação dos investimentos públicos e privados, mas reverter a prioridade conferida à pecuária pela política pública não é tarefa simples.

Um primeiro passo sem dúvida foi abandonar a visão romântica que prevaleceu entre os ambientalistas até meados da década de 1990, e passar a enfocar a biodiversidade florestal como ativo econômico estratégico.

De fato, para levar a cabo os compromissos firmados no âmbito da ONU, é necessário assentar a produção florestal em negócios duradouros, que, mediante a aplicação da tecnologia de uso múltiplo, promovam a exploração sustentável da biodiversidade.

Uma medida prioritária é a criação, pelo Basa, banco público indutor da economia local, de carteira de crédito direcionada especificamente ao apoio desse tipo de empreendimento, em especial os que se vinculam aos serviços ambientais prestados pela floresta na estocagem de carbono e melhoria da qualidade da água. 

As florestas do Acre, por exemplo, apresentam baixo volume (medido em metros cúbicos) de madeira por hectare, todavia, em contrapartida, são cruciais para assegurar a vazão nas cabeceiras dos principais tributários da calha direita do rio Amazonas.

Nunca é demais repetir. O uso múltiplo da biodiversidade florestal se justifica, em face de um princípio elementarr: quanto maior o número de espécies manejadas, menos intensa será a exploração de cada uma delas e menor a possibilidade de vir a ser rompida alguma relação ecológica importante.

Princípio esse que associa a viabilidade econômica à conservação da biodiversidade florestal.

O cumprimento dos termos pactuados com a ONU demanda uma política florestal para a Amazônia que ainda não foi concebida. O tempo urge!

 

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Política ambiental não é para amadores

* Ecio Rodrigues

No Brasil, os mandatários eleitos para o Executivo (em esfera municipal, estadual e federal) costumam supor, inadvertidamente, ao montar seus governos, que a gestão da pasta ambiental não exige formação especializada.

É provável que o equívoco tenha origem em reivindicações do próprio movimento ambientalista, que ainda hoje considera que o cargo de analista ambiental pode ser exercido por qualquer profissional de nível superior.

Não à toa, concursos realizados por Ibama e ICMBio (para ficar apenas na alçada federal) não exigem graduação em cursos correlatos à área do meio ambiente, tais como engenharia florestal e biologia.

Por consequência, e mesmo passando por um período preparatório dispendioso, os aprovados, de maneira geral, não têm a qualificação necessária para atuar no diagnóstico dos impactos ambientais e na elaboração de pareceres técnicos complexos.

Nada mais paradoxal que a deficiência técnica que se constata na atuação dos órgãos ambientais na Amazônia.

É fato que a engenharia florestal habilita o profissional para o manejo da biodiversidade florestal. Também é fato que, na Amazônia, mais da metade das atribuições dos órgãos ambientais está relacionada ao tema das florestas.

Contudo, pode-se dizer – sem querer ser preciso – que de cada 10 técnicos de nível superior, no máximo 2 são engenheiros florestais, sendo que os 8 restantes não são qualificados para atender à demanda do órgão, já que o concurso que prestaram não exigiu essa capacitação.

No caso dos analistas do ICMBio, instituto responsável pela gestão de reservas extrativistas e parques nacionais, é imprescindível que possuam noções mínimas de política ambiental e, por conseguinte, logrem discernir as linhas conceituais que permeiam o assunto, a saber, conservacionismo e preservacionismo.

Afinal, as duas vertentes estão no centro dos preceitos discutidos e estabelecidos no âmbito do Acordo de Paris, o mais amplo e mais sólido pacto ambiental já celebrado pelos países associados à ONU.

A título de esclarecimento, destaque-se que os adeptos do preservacionismo defendem a criação de unidades de conservação de proteção integral, onde não é permitida a presença humana, na condição de principal mecanismo para a obtenção da sustentabilidade no crescimento econômico da Amazônia.

Na visão preservacionista, a segregação de áreas de proteção integral contrabalançaria os impactos observados no restante do território – decorrentes da substituição da biodiversidade florestal por áreas de cultivo/pastagem – e asseguraria um suposto equilíbrio ecológico.

Para os adeptos do conservacionismo, por outro lado, a sustentabilidade só será alcançada mediante o manejo e a inserção da biodiversidade no sistema econômico – não sendo aceitável, portanto, a conversão do ecossistema florestal em pasto.

Dessa forma, como proposta adequada para a conquista da sustentabilidade, defendem a criação de unidades de conservação de uso sustentável, como reservas extrativistas.

Guardando afinidade com um ou outro pensamento, obras clássicas estudadas por técnicos e pesquisadores discutem o desenvolvimento sustentável abordando a relação entre crescimento demográfico/oferta de alimentos/biodiversidade florestal.

Complementa a formação na área ambiental conhecimento básico em torno da questão das desigualdades regionais, sobretudo as alusivas aos níveis de consumo dos países do Norte e do Sul, e que respaldaram os termos convencionados no Acordo de Paris.

Por fim, os analistas do ICMBio devem forçosamente saber distinguir os instrumentos de gestão ambiental, tanto os inseridos no princípio do poluidor/pagador quanto os inerentes ao princípio do comando/controle – tendo em vista que esses instrumentos são referência para a execução da Política Nacional de Meio Ambiente.

Muitos preferem politizar o recorrente fracasso em zerar o desmatamento na Amazônia, mas uma coisa é certa: não é empreitada para amadores.

 

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.