terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Transição para a economia de baixo carbono já começou

 

* Ecio Rodrigues

“Esquina civilizatória” é um termo cunhado por Cristovam Buarque para designar profundas alterações de paradigma que acontecem ao longo da história da humanidade, geralmente de maneira pouco perceptível pela maioria dos indivíduos.

Foi assim quando, durante a segunda metade do século XVIII, a máquina a vapor e a locomotiva revolucionaram o transporte de cargas e pessoas, reduzindo o tempo e estimulando o contato entre culturas de uma forma até então inimaginável.

Depois do surgimento da máquina a vapor, a humanidade não seria mais a mesma – e tanto o meio urbano quanto o rural seriam modificados intensa e peremptoriamente.

Nada mais compreensível. O surgimento de uma nova alternativa econômica, baseada na manufatura de um conjunto diversificado de bens, deslocou o referencial produtivo e a força laboral da área rural para a urbana.

No campo, a inexorável conversão da terra num bem econômico intensificou o êxodo rural e levou grandes contingentes populacionais às cidades, transmudando-as em um amontoado de gente.

A humanidade investiu na industrialização, assumindo os prejuízos sociais e ambientais dela decorrentes, diante da perspectiva de obtenção de ganhos relacionados à qualidade de vida.

Com o algodão, a fábrica e a ferrovia, teve início um processo irreversível rumo ao capitalismo, como sistema econômico, e rumo à democracia, na condição de modelo de organização política.

Passados dois séculos dessa impressionante metamorfose, constata-se que a explosão demográfica não se concretizou, como previu em 1798 o economista inglês Thomas Malthus, e os aglomerados urbanos oferecem melhoria crescente nas condições de vida, atraindo cada vez mais gente.

No meio rural, por seu turno, os avanços são igualmente perceptíveis. Estabeleceu-se uma sociedade agrária estável, que, a despeito de se basear em grandes propriedades e no modelo produtivo de agronegócio exportador de espécies vegetais e animais classificadas como commodities, apresenta, de forma geral, IDH elevado e próximo ao que se observa em áreas urbanas.

A grande questão que se levanta é se existiria outro rumo que não o da industrialização e o do agronegócio, do cultivo de soja e da carne de boi – e que, sob menor impacto ambiental e maior justiça social, permitisse igualmente a satisfação das necessidades humanas de vestuário, alimentação, transporte e moradia.

Se até o final do século XX não se tinha como plausível um caminho alternativo, agora, nos primeiros 20 anos do século XXI, a realidade parece apontar para significativas transformações em andamento.

Diante das mudanças em curso na Europa e dos preceitos acordados pelas nações do mundo no âmbito do Acordo de Paris, percebe-se que o modelo de desenvolvimento ancorado na industrialização dá sinal de esgotamento em sua raiz: a energia provida pelo petróleo.

Sem embargo, para a maior parte da população brasileira, a produção de energia elétrica por meio do uso das forças da natureza (vento, água e sol) e do aproveitamento de biomassa pode ser tão inusitada quanto foi a Revolução Industrial há mais de 200 anos para os europeus.

Do mesmo modo, em vista da prevalência da pecuária extensiva na Amazônia nos últimos 50 anos – atividade baseada no desmatamento da floresta para a instalação de pasto –, a defesa da exploração da biodiversidade florestal como saída econômica para a região parece algo chocante.

Tal como a alteração da matriz energética mundial mediante a substituição do petróleo, a consolidação de modelos de produção ancorados na biodiversidade florestal da Amazônia é fundamental para a mitigação do aquecimento global e a estruturação da economia de baixo carbono.

Alguns não perceberam, outros ainda vão demorar a reconhecer, mas, como afirma Cristine Lagard, presidente do Banco Central Europeu, o tema das mudanças climáticas “é um assunto tão sério que embora não pareça, compete também aos bancos centrais, e certamente ao setor financeiro”.

Ora, quando até os bancos já passaram a defender a economia de baixo carbono, há que se assentir que uma mudança de paradigma está a se processar. Pode ser uma nova esquina civilizatória.

 

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela UnB.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Bioeconomia na Amazônia deve excluir pecuária extensiva

 *Ecio Rodrigues

O desmatamento e as queimadas são, de longe – e com maior intensidade a partir da década de 1970 –, os mais graves problemas ambientais que afligem a zona rural da Amazônia.

Todos os que se dedicam ao estudo da região conhecem o procedimento. No rastro do desmatamento (ilegal ou legalizado) para expansão da criação extensiva de boi e antes do uso do fogo para limpeza do solo, o madeireiro é acionado para retirar as árvores mais valiosas, o chamado “filé”, constituído por cerejeira, jatobá, cedro – o que equivale a menos de 30% da madeira disponível. Outros 70% costumam ser queimados.

Fato curioso é que a liquidez da madeira vendida antes da queima ajuda a custear trabalhadores e maquinários a serviço do próprio desmatamento. Ou seja, paradoxalmente, é a própria riqueza da floresta que financia sua substituição pelo pasto cultivado.

Esse quadro muda e se agrava quando se esgota a área de floresta disponível para o desmatamento legalizado. No Acre, por exemplo, a aprovação do zoneamento ecológico-econômico em 2007 possibilitou a ampliação, em mais de 3 milhões de hectares, da superfície florestal sujeita ao desmate para instalação de pasto.

Passados 13 anos, contudo, a pecuária extensiva já consumiu os milhões de hectares de florestas assegurados pelo ZEE e, como não poderia ser diferente, demanda por mais.

Nesse estágio em que a pressão por novas áreas de florestas se intensifica, os pecuaristas se voltam para fragmentos de florestas remanescentes, localizados, a maior parte, em áreas legalmente protegidas – unidades de conservação; áreas de preservação permanente; reservas legais; terras indígenas.

Desde 2019, de outra banda, o Ministério do Meio Ambiente, o Conselho Nacional da Amazônia e outras instâncias definidoras de políticas públicas para a Amazônia vêm defendendo a bioeconomia como alternativa de ocupação produtiva para a região.  

Todavia, até agora, o propósito esboçado pelo MMA não passa disso mesmo, de uma mera intenção, sendo que não existe nenhum plano ou política delineada. A bem da verdade, para se chegar ao estabelecimento da bioeconomia na Amazônia pelo menos dois grandes consensos teriam que ser construídos – algo muito difícil de ser alcançado, diga-se, sem a participação ativa dos governadores.

O primeiro deles seria em torno da percepção de que a pecuária extensiva, amparada por créditos públicos nos últimos 50 anos, trouxe benefícios econômicos pífios e destruiu as florestas, originando graves repercussões internacionais.

Assentada nesse consenso quanto aos malefícios da pecuária extensiva, a bioeconomia poderia vir a ser fomentada como alternativa econômica para transformar as vantagens comparativas da farta e acessível biodiversidade florestal da Amazônia em vantagens competitivas, no intuito de alcançar o desenvolvimento com sustentabilidade.

O segundo consenso seria em relação às opções produtivas adequadas aos ideais de sustentabilidade preconizados para uma região de significado planetário como a Amazônia.

Nesse sentido, os agentes econômicos e atores sociais que atuam na região teriam que se unir aos técnicos e pesquisadores que defendem a exploração comercial da biodiversidade florestal e demonstram a existência de tecnologia para tanto.

De concreto, a saída é estabelecer arranjos produtivos locais, todos ancorados em produtos e serviços oriundos do ecossistema florestal – começando pela madeira, passando pelo princípio ativo de medicamentos e cosméticos e chegando até ao sequestro de carbono e à produção de água.

Insista-se: em toda a região amazônica – e em especial no caso do Acre, diante da persistente estagnação econômica que afeta esse estado e da participação expressiva dos recursos públicos na economia local –, para que os dois consensos se tornem realidade é imprescindível a criação de condições políticas propícias.

A boa notícia é que um passo importante nesse rumo foi dado pelos extrativistas florestais ainda na década de 1990. Uma produção baseada na floresta e não na sua substituição por capim foi a principal justificativa para o surgimento das reservas extrativistas, um tipo especial de unidade de conservação considerado importante legado do Acre para a Amazônia.

Na reserva extrativista, o produtor deve voltar sua atenção para a floresta, e não para o roçado.

Mais de 40% do território do Acre possui situação fundiária regularizada na forma de reservas extrativistas. Significa dizer que mais de 5 milhões de hectares de florestas estão disponíveis para a efetivação da bioeconomia.

Não há tempo, a opção pela biodiversidade florestal precisa ser tomada já, pois a demanda da pecuária extensiva por terras cobertas com florestas só aumenta.

 

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.

 

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Política nacional para a Amazônia e bioeconomia

 Ecio Rodrigues & Aurisa Paiva

De uns tempos para cá, técnicos que atuam junto ao governo federal têm repetido às tantas que a bioeconomia – vale dizer, a organização da economia regional com base em ativos biológicos – seria a saída econômica para a Amazônia.

A bioeconomia é a bola da vez. De quando em quando surge na agenda brasileira a demanda pelo que os pesquisadores costumam chamar de “projeto nacional”, para a região amazônica – ou, com maior precisão, “política nacional para a Amazônia”.

Quem não se lembra dos esforços realizados na década de 1990, para citar os mais recentes, no âmbito da Pnial (Política Nacional Integrada para a Amazônia Legal), e, logo depois, nos anos 2000, com o PAS (Plano Amazônia Sustentável)?

Ambas as iniciativas propugnaram a necessidade de conceber e pôr em prática “uma nova visão da região” – que, por óbvio, se contrapunha ao atual modelo de ocupação produtiva, baseado no desmatamento.

Resumindo, há mais de 30 anos os planejadores concluíram que todos os modelos de desenvolvimento consumados na Amazônia buscavam – e ainda buscam – a homogeneização da biodiversidade florestal, de acordo com diretrizes do pensamento cartesiano. Inseridas em tal condição estão, por exemplo, as atividades produtivas da agricultura e da pecuária.

Alternativas econômicas que têm como referência a exploração comercial da biodiversidade florestal não podem ser compreendidas no âmbito desse universo simplista, exigindo, destarte, um novo modo de enxergar a região, que necessariamente deve reconhecer a imensa diversidade biológica do ecossistema e suas peculiaridades.

A Pnial e o PAS já se posicionavam no sentido de que a complexidade observada no ecossistema florestal da Amazônia não poderia ser compreendida e absorvida segundo as diretrizes do pensamento cartesiano.

Igualmente, nenhuma possibilidade de exploração do potencial produtivo desse ecossistema poderia configurar processos de domesticação, substituição e homogeneização, sobretudo monocultivos, já que tais processos levam, inexoravelmente, à inviabilização da própria ocupação produtiva da região.

Portanto, não há outro caminho a seguir, senão o que conduz, primeiro, ao reconhecimento da complexidade ecossistêmica – que por sua vez deve ser compreendida e respeitada – e, depois, ao estabelecimento de estratégias de manejo capazes de potencializar essa complexidade, de forma que ela venha a ser manipulada nos limites da capacidade de suporte do próprio ecossistema florestal.

Na trajetória entre a visão atual e a nova visão sobre a Amazônia ocorre uma verdadeira inversão de princípios. De empecilho para a produtividade – como é considerada no universo cartesiano –, a biodiversidade florestal passa a ser encarada como oportunidade a ser desenvolvida e aproveitada.

Estudiosos que se dedicam a compreender a dinâmica econômica da Amazônia diagnosticam o fracasso da pecuária extensiva para gerar emprego e renda na região e demonstram que o estabelecimento de um novo modelo baseado na exploração da biodiversidade florestal é questão imperativa.

Autores da área de sociologia e antropologia que estudam o uso intensivo dos recursos florestais realizado ao longo de mais de 100 anos pelas populações tradicionais – de acordo com o modo extrativista de produção – não têm dúvida quanto à adequação desse modelo de ocupação produtiva para a sustentabilidade da Amazônia.

Pois bem. Diante de tudo isso, e considerando o atual modismo da bioeconomia, dois questionamentos surgem de pronto.  

O primeiro: de que maneira a pecuária extensiva pode ser encaixada na bioeconomia, já que se trata de uma atividade que depende, em larga escala, do desmatamento para prover terras a serem cultivadas com capim?

O segundo: como a bioeconomia se introduz no arcabouço legal e normativo criado nos últimos 30 anos, que reconhece a exploração comercial da biodiversidade florestal como o caminho concreto para uma ocupação econômica sustentável da Amazônia?

Essas duas perguntas precisam ser respondidas. O problema é que o governo federal, ao que tudo indica, não sabe a resposta.  

domingo, 3 de janeiro de 2021

Um produto chamado biodiversidade florestal da Amazônia


* Ecio Rodrigues

A adequação da produção rural da Amazônia às condições ecológicas da região, marcadas pela predominância de floresta tropical, passou a ser prioridade para investidores e financiadores, sobretudo os internacionais, no período pós-Rio 92.

Não à toa, nos 10 anos seguintes à conferência foi realizado investimento público expressivo, com participação ativa do Ministério do Meio Ambiente, por sua Secretaria da Amazônia, no intuito de fazer introduzir, no sistema de financiamento gerido pelo Banco da Amazônia, Basa, critérios relacionados à sustentabilidade – e, ao mesmo tempo fazer assimilar esses critérios junto aos produtores.

Na condição de principal operador dos recursos públicos disponibilizados por meio do FNO, o Basa foi instado a se envolver em uma série de eventos que discutiram o amoldamento de investimentos rurais ao ecossistema florestal da Amazônia.

Naquela época, acreditava-se, com acerto, que seria necessário ampliar os financiamentos a juros subsidiados do FNO destinados a custear alternativas produtivas baseadas no aproveitamento comercial da biodiversidade florestal – já que, a despeito da importância dessas atividades para a sustentabilidade, havia elevado risco para o capital privado.

Mas, mesmo sob juros subsidiados bem inferiores aos praticados no mercado, os grandes proprietários rurais, de maneira geral, não se dispuseram a encarar a aventura de mudar de atividade produtiva, ou seja, passar da predatória pecuária extensiva para a exploração do potencial da biodiversidade florestal.

O risco acabou sendo assumido por pequenos produtores, em especial os acostumados ao modo extrativista de produção e às agruras da secular extração de borracha, que se encontrava em fase de inexorável declínio.

Não obstante, o advento das reservas extrativistas, principal legado do Acre para a Amazônia, trouxe novas perspectivas para a produção florestal.

Se antes a equação da sustentabilidade em relação à produção oriunda da biodiversidade florestal estava zerada pelos dois lados – isto é, não se produzia porque não havia mercado, e não havia mercado porque não existia produção perdurável –, as reservas extrativistas passaram a garantir estoque de florestas, protegendo-as do acelerado desmatamento que ocorria em seu entorno.

Pelo lado da produção, que é o mais importante na equação da sustentabilidade produtiva, ocorreram alguns avanços sensíveis, que tornaram a oferta anual estável para produtos como castanha, açaí, madeira e copaíba, para citar os mais lucrativos.

Era o momento de buscar o tal ecomercado.

Mas esse passo se mostrou mais difícil do que se imaginava. Com efeito, embora considerado em potencialidade, o mercado parecia muito distante e, de certa forma, irreal – tanto em quantidade demandada quanto no complexo controle de qualidade da matéria-prima extraída da biodiversidade.

Parece faltar, ademais, uma superfície de contato entre o produtor que oferece um produto da biodiversidade florestal e o comprador do ecomercado, que exige garantias de que o processo produtivo não contribuiu para a destruição da floresta.

Para viabilizar esse contato se faz necessária a atuação de profissionais que facilitem as negociações entre o mercado (sempre objetivo e apressado) e o produtor florestal (sempre pouco objetivo e sem pressa).

Esse agenciador, que pode ser público ou privado, com ou sem fins lucrativos, contribuirá para a superação do maior gargalo para a exploração da biodiversidade florestal: a conquista de mercados consumidores permanentes.

À medida que essa difícil equação for se equilibrando, de modo a satisfazer o produtor florestal e o ecomercado, vai ser possível organizar arranjos produtivos ou clusters, para usar os conceitos dos aglomerados econômicos, criando uma marca de responsabilidade ecológica e, o melhor, promovendo a maior vantagem competitiva da Amazônia, a biodiversidade florestal.

Lamentavelmente, todavia, até agora a equação da sustentabilidade na produção da biodiversidade florestal não avançou, e a insustentável pecuária extensiva continua a receber parcela considerável do financiamento do Basa.    

 

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.