Terceiro artigo da série RETROSPECTIVA SUSTENTABILIDADE DA AMAZÔNIA EM 2021 (publicado originalmente em 20/06/2021).
Para
iniciar o novo ano, e como forma de apresentar uma mostra da realidade
vivenciada na Amazônia durantes os 12 meses do ano que terminou, foram
selecionados e serão novamente postados, neste espaço, 4 textos considerados
representativos, entre os mais de 50 artigos publicados em 2021. Abaixo o
terceiro artigo.
Uso múltiplo da
biodiversidade florestal é a chave para o sucesso da bioeconomia na Amazônia
*
Ecio Rodrigues
Imagine
um almoxarifado que dispõe de mais de 50 produtos (a maioria perecível) em
estoques reduzidos que duram cerca de 3 meses, cada um atendendo a um
determinado nicho de mercado e sendo comercializado sob valor atrativo.
É
mais ou menos assim que funciona a economia da biodiversidade florestal da
Amazônia.
Sem
embargo, e ainda que inúmeras pesquisas tenham comprovado o valor econômico
estratégico desse almoxarifado, a região ainda não conta (excetuando-se a
indústria madeireira) com empreendimentos bem sucedidos e em funcionamento
voltados para a exploração da biodiversidade florestal.
Essa
circunstância, pode-se dizer, perdura desde o final da Segunda Guerra Mundial,
quando o principal produto da biodiversidade florestal amazônica, a borracha,
foi praticamente eliminado do mercado de pneus.
Administrar
esse complexo almoxarifado exige grande capacidade técnica. A boa notícia é que
já foi desenvolvida tecnologia apropriada e há disponibilidade de engenheiros
formados na própria região – o que permite a gestão desse patrimônio, de
maneira a propiciar renda e emprego permanentemente.
A
noção de uso múltiplo da biodiversidade é recente. Até a segunda metade da
década de 1980, a ideia de uso múltiplo se restringia às diversas possibilidades
de beneficiamento da madeira.
Naquela
época, a engenharia florestal amazônica ainda não era capaz de “ver a floresta
que existe além das árvores”, para citar um provérbio inglês comumente usado em
macroeconomia.
A
versão contemporânea do uso múltiplo aplicado à biodiversidade florestal foi
formulada mais acentuadamente no Acre, onde um contingente expressivo de
extrativistas, ou manejadores florestais, até hoje obtém renda com a venda de
castanha, açaí, jarina e mesmo borracha.
É
possível, inclusive, determinar horizontes temporais distintos para a evolução
da tecnologia de uso múltiplo. Até 1987, a extração de borracha e castanha,
apesar de praticada do mesmo modo havia mais de um século, ainda era a base da
economia no estado.
Com
efeito, os dois produtos representavam a maior parcela do ICMS arrecadado no
setor primário. A exploração de um e outro foi considerada, pelo movimento
ambientalista, uma atividade adequada do ponto de vista ecológico, uma vez que
não causava danos à floresta.
Por
isso, os ambientalistas apoiaram os seringueiros na reivindicação pela criação
de reservas extrativistas, sendo que a partir daí mais de 2 milhões de hectares
foram destinados a essa finalidade em território estadual.
Já
mais para o final dos anos 80, a industrialização da castanha para exportação e
a diversificação da borracha eram os desafios. Quantidade significativa de
recursos públicos foram investidos em tecnologia e qualificação do produtor.
Todavia,
a borracha quase sumiu das estatísticas de produção amazônica, e a culpa já não
era mais dos asiáticos – como foi em 1911, o que inflamou nossos brios
nacionalistas, diante da falácia da biopirataria –, mas, sim, dos paulistas,
que vêm batendo recordes de produção anual desde 1993.
Por
seu turno, a castanha não deslanchou por questões que vão da mera fragilidade
gerencial a problemas complexos, como a inelasticidade do preço internacional.
A
falência da base produtiva amparada no binômio borracha/castanha forçou a busca
por outros produtos da biodiversidade florestal.
A
visão acerca do potencial estratégico da Amazônia ganhou força nesse período. A
partir do início da década de 1990, a biodiversidade florestal passou a ser
enxergada de forma holística, ou seja, como um todo – evidenciando-se a
capacidade da floresta para ofertar um leque variado de produtos e de serviços
ambientais, estes últimos relacionados principalmente ao sequestro de carbono e
à produção de água.
Resumindo,
o uso múltiplo pode ser explicado como a possibilidade de manejar a
biodiversidade para obter riqueza de maneira perene, sem comprometer as
relações ecológicas que ocorrem no interior da floresta.
Chamou-se,
então, de manejo florestal de uso múltiplo essa atividade-fim
da engenharia florestal amazônica, que permite administrar adequada e
satisfatoriamente o almoxarifado da biodiversidade florestal, viabilizando a
vocação produtiva da região.
Mas
a sustentabilidade do uso múltiplo só será alcançada quando os produtores
lograrem obter retorno financeiro superior ao auferido com a pecuária extensiva
de gado. Enquanto a criação de boi for mais vantajosa financeiramente, o
produtor será atraído para essa atividade.
Enfim,
não há alternativa. A bioeconomia da Amazônia precisa se afastar da pecuária
extensiva e promover o uso múltiplo da biodiversidade florestal.
*Professor Associado da
Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal (UFRuRJ), mestre em Política
Florestal (UFPR), e doutor em Desenvolvimento Sustentável (UnB).
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