* Ecio Rodrigues
Aposentei-me hoje. Ou talvez ontem, não sei bem.
Trata-se de uma paráfrase da abertura de “O Estrangeiro”, que figura entre as mais célebres passagens iniciais de clássicos da literatura universal.
Mas serve para dar uma ideia do processo de aposentadoria dos funcionários públicos federais, onde nada é muito claro. Basta mencionar que para enquadrar cada situação à regra aplicável é preciso levar em conta uma série de variáveis e combinações estabelecidas por nada menos do que 5 emendas constitucionais.
Despedir-se da carreira docente não é decisão das mais simples. O empurrão definitivo veio agora, com o fim do período de ensino remoto que perdurou nos últimos 5 semestres letivos, desde a quarentena imposta pela pandemia de covid.
O sistema remoto trouxe novos desafios, e devo dizer que foi instigante a inédita experiência de preparar, gravar, compartilhar e debater com os alunos mais de 30 videoaulas. O encerramento desse ciclo suscitou em mim um sentimento de despedida que, associado aos riscos decorrentes do retorno ao ensino presencial, logo se converteu na certeza de que meu tempo de Ufac se completara.
Ou, para ser preciso, meu tempo na engenharia florestal da Ufac.
Considero-me um dos professores pioneiros do curso, já que cheguei ainda nos primórdios, e minha aula inaugural na Ufac foi para a primeira e inesquecível turma de engenheiros florestais graduados no Acre.
Desde então venho ministrando as disciplinas de Política Florestal e de Extensão Rural, o que me deu a oportunidade de interagir com quase 1.500 alunos ao longo dos anos e de contribuir (assim espero!) para a formação profissional desses jovens.
No caso de duas dezenas de destacados alunos, o enriquecedor convívio da sala de aula se estendeu aos projetos de extensão que tive a sorte de conduzir com o patrocínio do CNPq. Sempre envolvendo assuntos de relevância para a realidade local, esses projetos totalizam cerca de R$ 1.000.000,00 (em valores da época) – cifra que decerto está entre as maiores já obtidas por um professor da Ufac em financiamento de projetos.
O uso da palavra “sorte” é intencional. É que boa parte de minha trajetória profissional coincidiu com um período profícuo para a pesquisa, entre meados dos anos 1990 e o início da década de 2010, quando o CNPq contava com recursos e vontade política para o financiamento de projetos.
Depois de assumir a cátedra na Ufac, o primeiro projeto que eu e minha equipe logramos aprovar tinha o propósito de testar a viabilidade da criação comercial de animais silvestres amazônicos (paca, especificamente) no ambiente da pequena propriedade rural.
A experiência compreendeu, em suma, a instalação de um criatório rústico e a adaptação e acompanhamento de um plantel de 12 animais durante 2 anos.
Os resultados demonstraram que esse tipo de iniciativa é compatível com a realidade do meio rural do Acre, não trazendo dificuldades alheias ao cotidiano do produtor e permitindo ampliar em até 30% a renda dos colonos e extrativistas.
Posteriormente, uma parceria com a ONG germânica de ponta Instituto Floresta Tropical (na tradução livre para o português) nos levou às florestas marginais ao rio Purus, entre os municípios amazonenses de Boca do Acre e Lábrea, onde há ocorrência natural de árvores cacaueiras (Theobroma cacao).
Foi o ponto de partida para o projeto Cacau Nativo do Purus, a mais expressiva pesquisa de extensão até hoje levada a termo pela engenharia florestal da Ufac, que venceu 2 editais nacionais do CNPq e recebeu 400 mil reais em financiamento.
Tendo sido bem-sucedido no objetivo de introduzir – por meio da execução de plano de manejo – o fruto do cacaueiro na cesta de produtos coletada pelos extrativistas do alto Purus, o projeto contribuiu para fazer do cacau nativo um produto comercial, privativo da Amazônia, voltado para o atendimento do mercado internacional de chocolates premium, ou especiais.
São chocolates fabricados com alto teor de cacau e direcionados a um público de elevado poder aquisitivo.
A exemplo da empresa alemã que à época passou a adquirir o cacau colhido pelos ribeirinhos de Boca do Acre, esse mercado busca a singularidade da amêndoa amazônica e o seu flavor inconfundível, sui generis, distinto do sabor da semente oriunda dos monocultivos.
A pesquisa originou, entre outros documentos técnicos e acadêmicos, 3 dissertações de mestrado e 34 monografias, além de um livro publicado.
Mas seu maior legado certamente diz respeito à trilha desbravada e seguida agora por outras experiências no apoio à produção de cacau nativo, empreendimento exclusivo dos pequenos produtores que habitam as florestas adjacentes aos rios amazônicos.
O contato com os cacaueiros dispersos às margens do Purus trouxe a mata ciliar para o foco da engenharia florestal da Ufac. Assim, com o fito de oportunizar o estudo dessa vegetação fundamental para o equilíbrio dos rios, uma nova linha de pesquisa em extensão foi aberta no curso.
Começando pelo rio Acre e alcançando mais uma vez o alto Purus (desta feita na parte que corta o território acreano), a pesquisa sobre a mata ciliar repetiu o êxito obtido com o cacau nativo e também saiu vitoriosa em 2 editais nacionais do CNPq.
No âmbito do projeto Ciliar Só-Rio foi efetuado o inventário da mata ciliar do rio Acre e identificadas, mediante a formulação de um coeficiente (o IVI/Mata Ciliar – Índice de Valor de Importância), as 20 espécies endêmicas mais importantes para aquela floresta, que devem ser utilizadas para fins de restauração dos trechos críticos.
Outra contribuição do projeto foi a definição de uma metodologia destinada ao cálculo (sob parâmetros técnicos) da largura mínima a ser observada numa determinada localidade para a faixa de mata ciliar, no intuito de garantir a integridade do rio e o abastecimento urbano de água.
Essa largura foi computada para cada uma das 8 cidades cortadas pelo rio Acre e constou de uma proposta de legislação apresentada e discutida com os vereadores nas respectivas câmaras municipais.
Igualmente e com a mesma finalidade, o projeto Ciliar Cabeceiras ensejou o desenvolvimento de pesquisa inédita na mata ciliar do Purus – no trecho que vai da foz do rio Iaco, em Sena Madureira, até a região da nascente, no município de Santa Rosa, localizado na fronteira com o Peru.
Esses estudos forçam o entendimento de que os produtores ribeirinhos devem ser remunerados pelo serviço de manejar a mata ciliar, a fim de melhorar – em termos de quantidade e qualidade – a água que corre no leito e abastece as cidades a jusante de suas propriedades.
Os dois projetos geraram um significativo acervo de informações, incluindo uma tese de doutorado, 33 monografias e 2 livros editados.
Em 2011, entretanto, uma mudança de prioridade imposta pelo governo descontinuou o financiamento das pesquisas, sendo que a verba orçamentária do CNPq passou a ser inteiramente aplicada no programa Ciência sem Fronteiras.
Essa situação perdurou mesmo após o fim desse programa (o qual, aliás, malgrado seus pífios resultados, ainda carece de exame aprofundado), e a partir de 2019 tanto o CNPq quanto o próprio Ministério da Ciência e Tecnologia, muito mais por falta de competência do que outra coisa, submergiram num preocupante processo de letargia institucional.
No âmbito estadual, em face do que prevê a Política de Florestas do Acre, o governo apoiou a realização das Semanas Florestais, evento que recepcionava os calouros no início dos semestres letivos – e que tive a satisfação de idealizar e iniciar quando cheguei à Ufac, bem como de coordenar, juntamente com outros professores, durante as 10 primeiras edições.
É também com satisfação que contabilizo, em meus anos de Ufac e graças ao imprescindível auxílio de uma incansável equipe, a orientação de 148 monografias.
O trabalho em pesquisa demanda esforço coletivo e, sob esse aspecto, depende da sinergia, da contribuição e do entendimento que só uma equipe coesa e duradoura é capaz de propiciar.
Assim, agradeço imensamente aos professores Luiz Augusto Mesquita de Azevedo e Jairo Salim Pinheiro de Lima (Unesp), e aos pesquisadores Raul Vargas Torrico e Edivan Lima, pelos inestimáveis anos de parceria e valiosa colaboração para a formação dos engenheiros florestais.
Alguns assuntos me assombraram durante minha vida profissional, tornando-se objeto de estudo e reflexão, mas em nenhum investi tanto tempo, a nenhum me dediquei com tanto afinco como fiz em relação à pesquisa em torno do desmatamento da Amazônia e de sua intrínseca conexão com a pecuária extensiva.
Desse modo, praticamente toda a minha produção técnica e acadêmica se volta para uma obsessão: demonstrar que o boi está na origem da devastação florestal.
Os índices estatísticos são por demais elucidativos e comprovam, primeiro, que o desmatamento tem motivação econômica; segundo, que em mais de 90% das vezes se destina à instalação e ampliação de pastos.
Por outro lado, e diversamente do agronegócio profissionalizado que tem lugar no Sul e Sudeste, a pecuária exercida na Amazônia é arcaica e perdulária, apresentando baixíssima produtividade e disponibilizando, para o consumo de cada vaca, 2 hectares de pasto – ou seja, 2 hectares de floresta que foram desmatados e cultivados com capim.
A despeito de seu embasamento, todavia, a batalha que travo contra a pecuária na condição de principal responsável pela destruição da floresta tem sido um tanto solitária, e poucos me acompanham em minha obstinada jornada.
Do mesmo jeito que estou entre os poucos que apontam a nociva prática do desmatamento como o maior problema ambiental da região amazônica.
Essa lamentável qualificação costuma ser atribuída aos empreendimentos de mineração, incluindo o (superestimado) garimpo do ouro. Não passa de um equívoco, porém. E a explicação é simples.
Enquanto os impactos causados pela extração mineral são restritos e localizados, o desmatamento se processa de maneira alastrada e generalizada, avançando desde as faixas laterais das rodovias até as margens dos rios.
Resulta daí o contínuo alargamento das superfícies submetidas ao corte raso e, por conseguinte, a gradativa conversão da floresta em plantios de capim.
Enfim, não por vontade, mas divergências na interpretação da realidade fizeram surgir os embates.
Por sinal, um desses embates remete à motivação econômica do desmatamento – premissa que necessariamente faz concluir que o problema não está no ator social (o “grande” pecuarista), mas sim na opção produtiva (a pecuária).
É que os ambientalistas e setores da academia ligados aos movimentos sociais costumam deslocar a discussão para o campo da ética, como se a decisão entre desmatar ou não fosse questão de princípio moral.
Nessa linha, atribuem toda a responsabilidade pela destruição da floresta ao grande proprietário de terras, projetado na forma de uma alegoria – a do “poderoso e insensível pecuarista”, que seria movido por ganância e indiferença quanto à matéria ambiental.
Sem atentar para essa generalização descabida, cumpre destacar apenas que conforme evidencia a robusta base de dados fornecida pelo Inpe não importa se a propriedade é grande ou pequena, o ponto central é o exercício da pecuária, pois essa atividade depende do desmatamento para expandir seus pastos.
O olho do furacão está, portanto, na decisão tomada pelo produtor, seja o grande ou o pequeno, no sentido de investir na criação de boi solto no pasto.
E ele o faz por razões econômicas, visto que hoje, no setor primário da Amazônia, nenhum negócio compete com o do boi – considerando regulação, assistência estatal e tempo de retorno financeiro. Muito menos as iniciativas de natureza florestal.
Só quando o potencial da biodiversidade para a geração de riqueza se tornar uma possibilidade concreta de auferir renda – ou, em outras palavras, só quando o mercado florestal for tão atrativo quanto o do boi –, o produtor chegará a optar por investir na exploração dos serviços e produtos fornecidos pela floresta no lugar de criar gado.
Não há dúvida, a saída está na valoração comercial da biodiversidade florestal. Esse é o principal antidoto ao desmatamento legalizado – veja bem, o legalizado, não o ilegal. E eis aqui mais uma divergência.
Acontece que para o movimento ambientalista só existe, basicamente, desmatamento ilegal (o que nem de longe é verdade; e se fosse, estaríamos mergulhados, provavelmente, no obscurantismo do caos institucional).
Dentro dessa perspectiva, os ativistas defendem como solução para o problema o investimento em fiscalização.
Mais um equívoco.
É fato comprovado que os governos nunca deixaram de assegurar recursos ao aparato fiscalizatório. Além do que a série histórica do Inpe, que compreende mais de 30 anos de sólidas medições, mostra claramente que a fiscalização, apesar de infligir onerosos custos à sociedade, não resolve, quando muito produz efeitos de curto prazo.
Significa dizer que não tem operação fiscal que dê jeito, o produtor sempre volta a desmatar.
Por fim, o mundo espera que o Brasil reduza a zero a devastação anualmente perpetrada na Amazônia, e os países que aderiram ao Acordo de Paris não querem saber se a legislação infranacional tolera o corte raso das florestas.
De sorte que essa distinção entre desmatamento ilegal/legalizado caducou, perdeu a validade.
Mudando de controvérsia e passando a tratar da gestão das universidades federais – tema em cujo estudo e diagnóstico também empenhei meu tempo e intelecto –, outra coisa que caducou foi a eleição para reitor.
Faltam indicadores que retratem a rotina administrativa do ensino público superior e, em especial, a relação custo x benefício das universidades federais – o que poderia, por sua vez, ajudar a entender a relação entre o perfil dos gestores e a qualidade dos serviços prestados.
Sem embargo, a experiência adquirida ao longo dos anos demonstra a inadequação do sistema de eleição para a escolha dos reitores.
Bastaria uma análise do currículo e do desempenho dos que exerceram esse cargo nos últimos 30 anos para concluir o óbvio – em regra, não têm o perfil de gestor requerido para a função, e raros são os casos de eleitos que demonstraram ou reconhecida capacidade de gestão ou excelência em sua respectiva área de atuação, ou ambas. Afinal, ninguém vota num candidato por esses motivos.
As poucas informações disponíveis deixam entrever que geralmente se sai melhor no pleito quem tem mais facilidade para transitar entre os grupos da comunidade acadêmica e negociar apoio, principalmente entre os funcionários – e a última coisa que é enfocada é competência para administrar a universidade.
Quase sempre hábeis em se comunicar e angariar simpatia, esses candidatos são bons de voto, mas não se propõem a intervir para melhorar a esquizofrênica rotina universitária ou a vivência acadêmica, e dificilmente conseguem dissertar sobre a realidade econômica da cidade, da região ou do ecossistema onde se localiza a instituição.
Embora tida como símbolo da autonomia universitária, a verdade é que a votação ocorre sob boa dose de hipocrisia e – mesmo recebendo a designação de “consulta” – exibe os mesmos níveis de acirramento, vulgaridade, superficialidade e irrelevância observados em eleições de sindicatos.
Ou seja, um formato indigno da academia, de uma instituição de pesquisa que, pelo menos em tese, representa a elite científica e intelectual do país.
Diante dessas idiossincrasias, com o tempo o procedimento foi perdendo o relevo e o significado, tornando-se anacrônico, e hoje parece ultrapassado até mesmo para o contexto sindical.
A consequência natural e perceptível é o esvaziamento do pleito, já que tanto eleitores quanto possíveis concorrentes perdem o interesse e se afastam. Não é incomum que um grupo qualquer de professores e servidores vinculado ideologicamente a algum partido passe a monopolizar o processo, logrando eleger seus candidatos durante um tempo, até ser substituído por outro grupo.
Dessa forma, muitas vezes um único candidato participa da eleição, mas mesmo assim não obtém representatividade. E para compor a lista tríplice a ser encaminhada ao MEC, como prevê a legislação, são incluídos dois nomes de professores que sequer tomaram parte do escrutínio. Uma conduta administrativa que apesar de tolerada contraria princípios elementares da boa gestão.
Enquanto isso, os entraves de gerenciamento e gestão das universidades federais só se aprofundam.
E mesmo sendo gratuitas, mesmo fornecendo alimentação, mesmo disponibilizando bolsas sob amplos critérios, mesmo despendendo mais recursos per capta, as universidades federais vêm, ano após ano, perdendo matrículas para a rede particular.
Essa é a situação da Ufac, que nos últimos anos tem visto reduzir acentuadamente a quantidade de ingressos em seus cursos enquanto aumentam as admissões em faculdades particulares como a Uninorte – que, aliás, em 20 anos de funcionamento superou a universidade federal em número de alunos matriculados.
Finalmente, não poderia me despedir sem agradecer à Oscip Associação Andiroba, entidade que recepciona em seu site institucional há mais de 15 anos textos de minha autoria (este, inclusive) abordando temas de política pública afetos à Amazônia e ao Acre, além de conteúdos relacionados ao desenvolvimento sustentável e às implicações do desmatamento e das mudanças climáticas.
Com periodicidade semanal, esses escritos somam cerca de 50 artigos por ano, inteirando mais de 450 no total, até o momento.
Também contei com o fundamental suporte da Associação Andiroba para a publicação de 18 livros que ajudam a esclarecer o eterno dilema que opõe os ideais do preservacionismo aos do conservacionismo, e que a Amazônia não consegue superar.
Entre as viagens, leituras e outras aprazíveis atividades de que pretendo me ocupar agora que estou aposentado, persistirei na peleja em defesa da valoração comercial da biodiversidade florestal como único caminho para o desmatamento zero na Amazônia e, no caso do Acre, única porta para o desenvolvimento econômico.
Ainda não estou pronto para renunciar à minha obsessão.
Não tenho dúvida, por outro lado, que uma economia de baixo carbono, sem petróleo e sem gado no pasto, deverá prevalecer no futuro do Acre. Tomara que esse futuro chegue logo.
Enfim, depois da Ufac nos encontramos por aqui.
*Professor aposentado da Universidade Federal do Acre.
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