segunda-feira, 29 de agosto de 2022

A era da borracha na Amazônia

 * Ecio Rodrigues

Vez ou outra aparece na mídia alguma notícia alusiva à reativação de seringais nativos na Amazônia, sacudindo o imaginário popular com a possibilidade de ressurgimento da era de ouro da borracha – quando a região alcançou uma pujança econômica jamais repetida.

Mas como disse certa feita um ex-seringalista, a coleta do látex nos dias atuais só seria possível por meio da “convocação de espíritos”.

Referia-se ele ao fato de que os seringueiros, que dominavam as técnicas de exploração da Hevea brasiliensis, já morreram todos, levando consigo sua expertise – sendo que seus descendentes ou migraram para as cidades ou, seguindo no mesmo caminho traçado pela maioria dos pequenos produtores amazônidas, partiram para a criação extensiva de boi, na (vã) expectativa de um dia se tornarem grandes pecuaristas.

Enfim, ainda que a extração da seringa voltasse a apresentar alguma chance de viabilidade econômica (o que não é o caso), sequer haveria trabalhador especializado a permitir a retomada da atividade.

A história registra dois ciclos econômicos da borracha, períodos de pico de produção gomífera na região amazônica.

O primeiro e de maior riqueza decorreu da nascente indústria do automóvel e durou de 1880 a 1911; o segundo, que veio no rastro do esforço de guerra, de 1940 a 1945.

O ciclo mais importante surgiu com a descoberta do processo de vulcanização – o que asseguraria matéria-prima para outra indústria em ascensão, a dos pneumáticos.

A tecnologia da vulcanização forneceu à borracha oriunda das seringueiras (não a sintética, que é subproduto do petróleo) a dureza e a estabilidade requerida pelos pneus dos veículos automotores. Foi o salto para o crescimento de um mercado inesgotável de produtos que demandam elastômeros.

A quantidade de trabalhadores arregimentados do Nordeste (fenômeno denominado por Celso Furtado de “transumância amazônica”) e a infraestrutura erigida mediante a exploração de uma única espécie vegetal, das centenas presentes na biodiversidade florestal, causaram forte impressão em renomados economistas e sociólogos, entre outros estudiosos, que se esforçaram para esmiuçar aquele momento histórico e inventariar a riqueza trazida à região pela seringueira. 

Hegemônica no mundo até 1911, quando os seringais cultivados da Malásia começaram a mostrar inigualável força e produtividade, a borracha nativa garantiu à Amazônia, simultaneamente e ao longo de mais de 30 anos, ganhos econômicos e sustentabilidade ecológica. Nenhum outro produto – de origem florestal, agropecuária ou mineral – chegou nem perto disso.

Sem condições de competir com os malaios, a produção amazônica entraria em declínio, ocasionando uma retração econômica de difícil recuperação. Esse declínio pode ser facilmente explicado pela teoria da inelasticidade da oferta.

Acontece que no seringal nativo a ocorrência da espécie se limita (em média) a menos de 5 árvores por hectare. Por outro lado, na Amazônia não é possível o cultivo domesticado, em razão da presença do fungo Microcyclus ulei, que causa o “mal das folhas”, doença que ataca os plantios e acaba por matar as árvores de seringa.

Diante da impossibilidade de ampliar sua oferta, os seringais nativos não competem com os cultivados, que podem chegar a mais de 500 árvores por hectare.

Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial a Malásia foi ocupada pelo exército alemão, e a borracha da Amazônia recuperou brevemente sua proeminência. O fim do conflito, em 1945, trouxe a decadência definitiva.

Posteriormente, a partir da década de 1970, os produtores do Sudeste do país, área de escape do mal das folhas (onde o fungo não prolifera) foram estimulados a plantar a Hevea – o que levou ao surgimento de cultivos homogêneos nessa região, principalmente em São Paulo.

Hoje a borracha nativa já não compete nem com os seringais paulistas – que desde 1992 superam toda a produção amazônica no mercado de pneumáticos –, sendo extraída em escala insignificante para as estatísticas e tendo perdido completamente sua importância comercial.

Mas a biodiversidade florestal da Amazônia vai muito além da borracha. E o mercado de carbono está só começando.

 

*Engenheiro Florestal (UFRuRJ), mestre em Política Florestal (UFPR) e doutor em Desenvolvimento Sustentável (UnB).

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