segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Sustentabilidade ecológica no livro “Raízes do Brasil”

 * Ecio Rodrigues

Juntamente com Celso Furtado, Caio Prado Júnior e Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda faz parte de um seleto grupo de estudiosos que se esforçaram para esmiuçar os componentes de nossa formação social e econômica, fornecendo elementos para projetar as chances de sucesso ou de fracasso reservadas para o futuro.

O livro “Raízes do Brasil”, publicado em 1936, discute desde a tecnologia de produção rural empregada entre o período da colonização e o final do século XIX até as características marcantes do cidadão brasileiro.

A preocupação com os impactos negativos do uso do fogo e do desmatamento, presente em toda a obra, denota o lado visionário do autor. Alertas relacionados à ausência de sustentabilidade agronômica e ecológica (embora esses termos não existissem à época) da produção agropecuária praticada pelo camponês são recorrentes.

Já no Capítulo 2, intitulado “Trabalho e Aventura”, consta a informação de que no século XVII todos os camponeses, sem exceção – fossem os próprios colonizadores portugueses, fossem originários de outros países europeus (inclusive os alemães, que imigraram para o Sul e eram tidos como produtores exemplares), fossem negros ou até mesmo indígenas –, faziam uso desregrado da pratica das queimadas, no intuito de viabilizar a agricultura e a criação extensiva de gado.

Manifestando profunda sensibilidade em relação à destruição das florestas nativas, o professor Buarque de Holanda, mais de 30 anos antes da realização da primeira conferência da ONU sobre meio ambiente, já chamava a atenção para os efeitos deletérios do emprego de técnicas rudimentares de produção agropecuária.

Sem embargo, ao discutir o modelo de ocupação perpetrado pelos colonizadores espanhóis na América hispânica, o historiador deixa claro que, em sua visão, os portugueses demonstraram bem mais preocupação e cuidado no contato com a natureza e na utilização dos recursos naturais. 

Para a instalação dos acampamentos e, posteriormente, no decorrer do assentamento das vilas e cidades, o português preferia respeitar a disposição dos obstáculos naturais, a ter de enfrentá-los e modificá-los.

Enquanto o espanhol subjugou o espaço a ser ocupado, moldando-o de acordo com planejamento previamente estabelecido – diante do que recortes de terrenos e domesticação do ambiente eram práticas necessárias –, o português não se importava em obedecer ao desenho natural forjado por topografia, cursos d’água e vegetação, tentando adequar-se àquele ambiente.

A postura portuguesa na ocupação, dessa forma, remete à interatividade com o meio, respeitando os acidentes naturais e certamente buscando um modo menos custoso de ocupação, que não exigisse esforços demasiados.

Como afirma Sérgio Buarque de Holanda:

A cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental, não chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na linha da paisagem. Nenhum rigor, nenhum método, nenhuma previdência, sempre esse significativo abandono que exprime a palavra “desleixo” – palavra que o escritor Aubrey Bell considerou tão tipicamente portuguesa como “saudade” e que, no seu entender, implica menos falta de energia do que uma íntima convicção de que “não vale a pena” [...] (Buarque de Holanda, 2001, p96).

O estilo português reflete um jeito de ser que teve muita influência sobre a formação do futuro nativo brasileiro. De origem marítima, com apego às atividades do mar, gosto pelas longas viagens, pouco ou nenhum anseio sedentário e sem tradição agrícola, os portugueses não impingiram ao tipo brasiliano o rigor característico do europeu.

Continuando, o professor aborda a facilidade com que os portugueses se relacionavam com os indígenas, apresentando uma visão harmônica entre colonizador e colonizado que destoa do senso comum predominante nas análises sobre o processo de colonização.

Segundo assevera, os portugueses encontraram uma população indígena com quem guardavam afinidade em certos aspectos, sobretudo no trato com a natureza – uma vez que a ideia de desfrutar prevalecia sobre a intenção de dominar, de aumentar a produtividade ou de domesticar as espécies.

Como os portugueses, os indígenas eram afetos aos desígnios da natureza: passavam horas na pesca e na caça, e preferiam se abastecer com os frutos da floresta a depender de pequenos e eventuais roçados, cultivados a duras penas e exigindo tamanho esforço laboral que os resultados pareciam não compensar.

Por isso, quando os indígenas – mesmo depois do contato e mesmo em conjunto com os portugueses – praticavam a agricultura, faziam-no de maneira rudimentar e sempre nômade.

Finalmente, foram os aborígines indígenas que iniciaram os portugueses nas artes da manipulação dos ecossistemas nativos e da biodiversidade florestal da Amazônia, meio sobre o qual detinham conhecimento e domínio.

Por sinal, diversos ciclos econômicos da Amazônia, a começar pela borracha nativa, corroboram a análise empreendida em “Raízes do Brasil” – de que o potencial produtivo da região reside na sua vocação florestal.

Não será diferente agora.   

 

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.

 

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Por uma nova visão de desenvolvimento para a Amazônia

 * Ecio Rodrigues

Nos últimos 50 anos, um expressivo esforço científico foi direcionado à análise da ocupação produtiva em vigor na Amazônia, baseada na criação extensiva de gado.  

O diagnóstico quase unânime em torno dos efeitos negativos e às limitações desse modelo só leva a uma conclusão: deu errado!

Diversas são as razões apontadas para o fracasso da pecuária extensiva, na condição de elemento-chave para criar e manter uma dinâmica econômica compatível com a demanda do contingente populacional que vive na região.

Não há dúvida científica quanto ao fato de que a expansão da pecuária trouxe graves problemas sociais, em face da ocupação de terras antes habitadas pelos extrativistas e da concentração da riqueza em menos de 10% dos estabelecimentos rurais.

Para muitos pesquisadores, inclusive, as consequências para o meio social são ainda mais graves do que os conflitos fundiários, atualmente menos significativos.

A contínua ampliação do plantel de gado na Amazônia, em especial a partir da década de 1970, causou profundo esgarçamento do tecido social, ao promover a migração para as cidades, sobretudo para as capitais, de uma população preparada apenas para o trabalho rural.

Seguindo nessa toada, os economistas alertam para a letargia econômica que há mais de 30 anos se evidencia nas estatísticas oficiais da região, dada a falta de competitividade que caracteriza a pecuária amazônica, em comparação com a produtividade observada em outras regiões do país, onde se localizam grandes mercados consumidores de proteína animal.

De outra banda, mesmo que se deixe de enxergar os insuperáveis entraves sociais e econômicos que obstam a criação extensiva de boi na Amazônia, não é possível ignorar a persistente reivindicação internacional em prol da erradicação definitiva da prática do desmatamento.

E não adianta se apegar ao direito de desmatar previsto no Código Florestal. Mesmo quando resultante do desmatamento dito legalizado, a destruição da biodiversidade florestal contraria as pesquisas e a ciência – sendo que os países que assinaram o Acordo de Paris em 2015 já vêm demonstrando sua intolerância em relação à devastação da floresta na Amazônia.

Existe alternativa, todavia. E o momento é oportuno para discutir os modelos de ocupação produtiva até hoje impostos na Amazônia, circunscritos ao universo de simplificação e de homogeneização ditado, por sua vez, pelo pensamento cartesiano. Inseridas em tal condição estão as atividades do agronegócio, notadamente a pecuária extensiva.

As atividades produtivas que têm como referência a utilização comercial da biodiversidade florestal não podem ser compreendidas no âmbito desse universo simplificador, exigindo um novo jeito de enxergar a região, pelo qual seja vislumbrada a complexidade da diversidade biológica e suas peculiaridades.

De igual modo, as possibilidades de exploração do potencial produtivo do ecossistema florestal não podem resultar, sob nenhuma hipótese, em processos de domesticação e homogeneização, uma vez que esses procedimentos levam a uma única direção – a substituição por cultivos e a inviabilização ecológica do próprio modelo baseado na biodiversidade.

Portanto, tentando ser bem objetivo, não há outro caminho a seguir, senão o que conduz, primeiro, ao reconhecimento da existência de uma complexidade ecossistêmica que deve ser compreendida e respeitada; e, daí em diante, ao estabelecimento de estratégias para o uso múltiplo da biodiversidade florestal, de forma a potencializar aquela complexidade, manipulando-a dentro dos limites impostos por sua resiliência.

Na trajetória entre uma formulação e outra ocorre uma verdadeira inversão de princípios. Assim, de obstáculo para a produtividade – como é considerada no universo cartesiano –, a biodiversidade florestal passa a ser reconhecida, no âmbito do pensamento complexo, como oportunidade a ser desenvolvida e aproveitada.

Afinal, há que se convir, mesmo que se apele apenas ao bom-senso, a substituição da biodiversidade florestal da Amazônia pelo boi solto no pasto é um absurdo!

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.

domingo, 5 de setembro de 2021

Queimadas no Acre em 2021 superam média de 24 anos

 * Ecio Rodrigues

Em 5 meses seguidos, o número de queimadas no Acre superou a média observada (considerando os registros para abril, maio, junho, julho e agosto) nos últimos 24 anos de medições.

Para quem, como São Tomé, prefere ver para crer, os dados da série histórica são publicados sob precisão e regularidade profissional pelo Inpe desde 1998, e podem ser acessados na plataforma https://queimadas.dgi.inpe.br/queimadas/portal-static/estatisticas_estados/.

Muito embora apenas os recordes atraiam o interesse da imprensa (que se preocupa mais com audiência do que com informação), o comportamento da média é o dado mais importante a ser monitorado, pois é o que possibilita vislumbrar tendências e antever recordes. Em relação a 2021, os números demonstram claramente a perigosa tendência de elevação das queimadas no Acre.

Explicando melhor. O risco de ocorrência, no curto prazo, de novo recorde de queimadas aumenta na proporção direta da elevação da média. Dessa forma, quanto maior a superação da média, maior o risco de recordes.

E todos devem consentir que uma série de registros que cobre 23 anos e 8 meses, um total de 284 medições, apresenta robustez e constância suficientes para sustentar análises precisas, de modo a evitar surpresas, como aquelas tragédias que parecem obras do destino, mas que são anunciadas.

As estatísticas do Inpe sobre as queimadas no Acre permitem afirmar, em síntese, que existe tendência de alta dos focos de calor – tendência esta que se iniciou em 2016, ganhou força em 2020 e, tudo em indica, está se acentuando em 2021, podendo resultar em picos, com sérias consequências para a saúde da população.

Há que se levar em conta, ademais, o fator agravante de que em 2020 o país (e o mundo) atravessou uma retração econômica sem precedentes, em razão da pandemia de covid, da qual ainda está se recuperando.

Os contextos em que o aumento desse tipo de prática nociva que depende de investimento financeiro (como é o caso da queimada) ocorre mesmo sob depressão econômica são ainda mais inquietantes, pois escapam ao padrão histórico, potencializando o risco de calamidades.

Diante desse lamentável diagnóstico, duas questões surgem de maneira quase espontânea, e deveriam ser objeto de esclarecimento por parte dos gestores ambientais no governo estadual.

A primeira se refere às medidas necessárias para estancar o aumento inercial que se observa desde 2016 e que, a persistir, trará picos mensais de queimadas em breve.

Posto que a alternativa existe e, hoje, no acre, todos os produtores têm acesso a pelo menos um trator para arar a terra, não havendo mais sentido no uso de um método agrícola tão rudimentar e tão maléfico ao meio ambiente e aos seres humanos.

Contudo, todas as vezes, nos últimos 30 anos, em que o problema das queimadas foi discutido, em eventos os mais diversos realizados quase que anualmente no Acre, todas as vezes!, foi levantado o pretexto do produtor que não tem dinheiro para arar a terra e que se não queimar morre de fome – e sob tal  subterfúgio o pernicioso procedimento continuou e continua indefinidamente a ser permitido.

Um pretexto que costuma chamar a atenção de um jornalismo precário, mas que, como ocorre com muitos conteúdos que ganham grande visibilidade, não é verdadeiro, não se apoia em nenhuma evidência.

Pior, é o tipo de asserção que contamina a realidade, distorce as informações e enterra a chance de encontrar soluções.

Já a segunda questão, um tanto mais complexa, diz respeito à disposição do grupo político que ocupa atualmente o palácio Rio Branco para confrontar a pecuária extensiva de gado, atividade que produz mais de 50% das queimadas no Acre – sendo, de longe, a principal responsável pela tendência de aumento que as medições revelam e que, afora os prejuízos ambientais, tem intensificado ainda mais os transtornos que o fogo, a fuligem e a fumaça todos os anos impingem à sociedade.

A bem da verdade, não é de hoje que os gestores estaduais (e também os municipais, forçoso dizer), sob muita boa vontade e nenhuma evidência científica, defendem a criação extensiva de boi, como se o agronegócio no Acre fosse o único na Amazônia a não depender de desmatamentos e queimadas.

Mas as estatísticas relacionadas às queimadas, obtidas por meio de imagens de satélite captadas em tempo real, vão continuar a ser publicadas pelo Inpe.

O mundo está vendo.

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Queimadas podem ser abolidas no Acre – se o governo quiser!

 * Ecio Rodrigues

Duas pseudoverdades são reiteradas todas as vezes em que – em reuniões, debates, conferências e outros eventos promovidos pelo governo ou pela sociedade civil – se discute o controle ou a proibição da prática da queimada no Acre.

Essas falsas premissas se referem às alegações de que: (a) o produtor não dispõe de dinheiro para mecanizar; e (b) ele precisa queimar para matar a fome.

Acontece que nenhuma das duas se sustenta, sendo refutadas pelas evidências científicas. Basta dizer que mais de 70% das queimadas anualmente realizadas em território estadual se destinam à renovação de pastos “velhos”.

Ou seja, de regra, o emprego do procedimento não se dá na agricultura nem tampouco para a abertura do primeiro roçado (o que seria o caso, fosse válido o argumento de que o produtor queima para comer), e sim no contexto da pecuária e em pastos já instalados, utilizados e consolidados.   

A ausência de embasamento, todavia, não impede que ambas as asserções repercutam na imaginação da população urbana do estado. A despeito de não manter vínculo com o setor primário, essa população, sabe-se lá por que razões, idealiza o pequeno produtor rural como um tipo que precisa de muito apoio, pois vive isolado, cheio de filhos, passando necessidade – e, ainda assim, sabe-se lá de que maneira, configura peça-chave para o crescimento econômico do Acre.

Um raciocínio um tanto torto, decerto, pelo qual fica subtendido que a produção rural é precária por falta de apoio do governo, contudo, se o produtor puder desmatar e queimar à vontade, o Acre se tornará próspero e rico.

Sob tal abstração, as queimadas vêm sendo toleradas, como se fossem um mal necessário, um sacrifício que os cidadãos têm de fazer – e se dispõem a fazê-lo! – em nome de um suposto (e inalcançável) desenvolvimento econômico a ser promovido pela atividade agropecuária.

Entretanto, estamos na segunda década do século 2021. Sendo bastante indulgente, pode-se afirmar que há pelo menos 30 verões, todos os anos um volume absurdo de fumaça encobre o céu e toma conta da atmosfera entre os meses de julho e setembro – o que leva a temperatura a atingir limites insuportáveis e, ademais, causa infecções respiratórias, arruina a qualidade de vida e mortifica o cotidiano dos habitantes das cidades, para ficar apenas nas implicações sociais.

É razoável que se indague, portanto, em primeiro lugar: qual o prazo para o estado chegar à prometida e esperada prosperidade?

E em segundo: por mais quanto tempo a queimada, conduta tão primitiva que remonta ao século XVII, continuará a ser consentida e a causar tanto mal? 

Se por um lado é infundada a justificativa de que o produtor queima por necessidade, por outro, inúmeras pesquisas comprovam a discrepância entre os altos custos (sociais, econômicos e ambientais) decorrentes das queimadas e os parcos benefícios gerados.

Ou seja, existe base científica suficiente a motivar a erradicação desse malefício da realidade rural do Acre.   

Mas é aqui que entra o “se o governo quiser” do título.

Desde que foi decretada a moratória das queimadas em todo o país, suspendendo, com algumas exceções e prazo inédito de 120 dias, o licenciamento do uso fogo na atividade agropecuária, os governadores da Amazônia estão, como se costuma dizer, com o guiso no pescoço.

Esperava-se uma resposta na mesma dimensão daquela medida, mas as gestões estaduais permaneceram inertes, sob o cômodo juízo de que o assunto das queimadas é coisa para o governo federal.

No Acre, o corolário dessa falta de ação não poderia ser diferente. No dia 20 de agosto completaram-se 5 meses seguidos em que o número de queimadas superou a média (em relação aos registros de abril, maio, junho, julho e agosto) apontada por 24 anos de medições.

Todas as vezes que são ou foram pressionados a proceder de forma enérgica, coibindo definitivamente as queimadas – um encaminhamento possível do ponto de vista científico e demandado pela sociedade –, os gestores ambientais do estado (ao menos nos últimos 30 anos) usaram o pretexto da fome do produtor.

Repetiram tanto essa desculpa que fica parecendo que realmente acreditam que existem 50 mil pessoas passando fome na zona rural do Acre, e que por isso ateiam fogo na terra ano após ano; ou que o produtor que queima pasto consolidado não tem ao seu alcance um trator sequer, seja adquirido por ele próprio, seja cedido pelo governo, pela prefeitura, pelo sindicato, pela cooperativa – a fim de arar o solo, ao invés de incendiá-lo.

Nem tudo está perdido, porém. A julgar pela pressão internacional que impacta o agronegócio brasileiro, o fim das queimadas no Acre será ditado pelo mercado.

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Acordo de Paris impulsiona mercado de carbono

 * Ecio Rodrigues

          Assinado em 2015 por mais de 190 países associados às Nações Unidas, o Acordo de Paris é considerado o mais abrangente e representativo pacto político destinado a minimizar os efeitos do aquecimento do planeta.

Ao aderir aos termos desse acordo, os países signatários, inclusive o Brasil, se comprometeram a cumprir metas de redução dos gases causadores do efeito estufa – leia-se: fumaça – que todos os anos lançam na atmosfera.

Essas metas são revistas e atualizadas anualmente. Porém, para chegar a elas, costumam ser travadas longas e difíceis negociações, a fim de superar um impasse recorrente, que persiste desde a Rio 1992 e que diz respeito à responsabilidade individual com a causa do aquecimento do planeta.

Acontece que a temperatura atual do planeta é consequência da fumaça produzida há muito tempo, uma vez que o dióxido de carbono, por exemplo, o principal agente do efeito estufa, pode permanecer na atmosfera por mais de 100 anos.

Significa dizer que os países desenvolvidos, que levaram a efeito um acentuado processo de industrialização entre o final do século XVIII e o início do XIX, são atualmente os maiores responsáveis pelo aquecimento global.

Para essas nações, admitir essa responsabilidade significa assumir um nível superior de compromissos com a redução, hoje, dos gases expelidos na atmosfera, além de uma parcela maior do dinheiro destinado ao investimento em ações reparatórias do processo de aquecimento.

Por outro lado, os países em desenvolvimento, tais como Brasil, China, Índia e Rússia, embora reconhecendo que contribuem para a ocorrência de temperaturas perigosas num futuro próximo, se recusam a adotar metas rigorosas de redução dos gases, sob a alegação de que, se o fizerem, comprometerão sua industrialização.

A aferição desse ônus – comum a todas as nações e ao mesmo tempo específico para cada uma – é o que emperra as negociações. Responsabilidades diferenciadas representam metas diferenciadas e investimentos igualmente diferenciados nas ações de mitigação dos efeitos do aquecimento do planeta.

Se nos países desenvolvidos a origem dos gases está na indústria, no Brasil vem do desmatamento na Amazônia a maior parcela do carbono expelido aos céus todos os anos.

Diante da dificuldade para se chegar ao estabelecimento das metas ajustadas no Acordo de Paris, bem antes, em 1997, foi celebrado o chamado Protocolo de Kyoto, assinado na cidade japonesa que lhe empresta o nome.

O Protocolo instituiu um sistema de pagamento por serviços ambientais, pelo qual indústrias localizadas em países desenvolvidos e que se encontram no limite da quota liberada de carbono, podem aumentar a quota – e, por conseguinte, sua produção – comprando créditos de emissão de carbono procedentes de países que possuem mecanismos de redução de emissões ou de sequestro de carbono, como áreas de florestas, nesse último caso.

Até 2019 foi comercializado U$ 1,95 bilhão de dólares em créditos de carbono nas bolsas de valores do mundo, em negociações entre entes privados. De um lado, as empresas emissoras e, de outro, os coletores de carbono. O pico de negociações ocorreu entre 2010 e 2013.

Esse montante foi originado em 9.807 projetos, distribuídos entre os países associados à ONU, sendo que mais de 70% deles se destinam à produção de energia elétrica baseada em fontes alternativas; dessas fontes, por sua vez, 50% correspondem à força das águas, ou seja, a usinas hidrelétricas.

Um novo ciclo de crescimento nas negociações de crédito de carbono teve início a partir da assinatura do Acordo de Paris, em 2015, todavia, foi freado com a retração econômica mundial ocasionada pela pandemia de covid-19.

A boa notícia é que, no Brasil, a despeito da inércia do governo na área ambiental nos últimos 2 anos, o mercado de carbono mostra sinais visíveis de expansão em 2021. Mas, nunca é demais lembrar, por aqui, o propósito único dos projetos de crédito de carbono é zerar o desmatamento na Amazônia.

 

* Professor da Universidade Federal do Acre (Ufac), Engenheiro Florestal, Especialista em Manejo Florestal e Mestre em Economia e Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília (UnB).

segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Política pública para a Amazônia não honra acordos com a ONU

 * Ecio Rodrigues

Na esfera ambiental, o Brasil é signatário de uma série de pactos capitaneados pela ONU, todos ratificados pelo Congresso. Entretanto, o governo não consegue transformar em política pública as responsabilidades assumidas perante o mundo e que, direta ou indiretamente, se voltam para o propósito de zerar o desmatamento na Amazônia.

Há quem discuta a legitimidade desses tratados – questionando inclusive o mais importante deles, o Acordo de Paris –, como fizeram os gestores que assumiram o Ministério do Meio Ambiente em 2019.

Pouco importa. A ONU vai exigir o cumprimento das obrigações ajustadas – sendo que, além de dispor de mecanismos de mercado para impor barreiras aos produtos do agronegócio pátrio, os países podem restringir investimentos em ativos brasileiros.

Há que se reconhecer, porém, que concretizar as metas estabelecidas nos acordos internacionais por meio de políticas adequadas à realidade ecossistêmica é empreitada complexa.

Ocorre que a atração de investidores para consumação da ocupação produtiva regional, no período posterior à Segunda Guerra e sob maior esforço público a partir da década de 1970, foi motivada pelo asfaltamento das rodovias e expansão da criação extensiva de gado.

Tida como impulsionadora do processo de ocupação, a pecuária obteve a subvenção de instrumentos de crédito e de fomento – que, ao longo dos últimos 50 anos, garantiram a hegemonia dessa atividade na região.

Sem embargo, a bem sucedida política de consolidação da pecuária mostrou ao mundo sua face perversa, diante do avanço observado, ano após ano, nos índices de desmatamento e, por conseguinte, das acentuadas perdas anualmente acarretadas à biodiversidade florestal.

A alteração desse quadro requer uma profunda readequação dos investimentos públicos e privados, mas reverter a prioridade conferida à pecuária pela política pública não é tarefa simples.

Um primeiro passo sem dúvida foi abandonar a visão romântica que prevaleceu entre os ambientalistas até meados da década de 1990, e passar a enfocar a biodiversidade florestal como ativo econômico estratégico.

De fato, para levar a cabo os compromissos firmados no âmbito da ONU, é necessário assentar a produção florestal em negócios duradouros, que, mediante a aplicação da tecnologia de uso múltiplo, promovam a exploração sustentável da biodiversidade.

Uma medida prioritária é a criação, pelo Basa, banco público indutor da economia local, de carteira de crédito direcionada especificamente ao apoio desse tipo de empreendimento, em especial os que se vinculam aos serviços ambientais prestados pela floresta na estocagem de carbono e melhoria da qualidade da água. 

As florestas do Acre, por exemplo, apresentam baixo volume (medido em metros cúbicos) de madeira por hectare, todavia, em contrapartida, são cruciais para assegurar a vazão nas cabeceiras dos principais tributários da calha direita do rio Amazonas.

Nunca é demais repetir. O uso múltiplo da biodiversidade florestal se justifica, em face de um princípio elementarr: quanto maior o número de espécies manejadas, menos intensa será a exploração de cada uma delas e menor a possibilidade de vir a ser rompida alguma relação ecológica importante.

Princípio esse que associa a viabilidade econômica à conservação da biodiversidade florestal.

O cumprimento dos termos pactuados com a ONU demanda uma política florestal para a Amazônia que ainda não foi concebida. O tempo urge!

 

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Política ambiental não é para amadores

* Ecio Rodrigues

No Brasil, os mandatários eleitos para o Executivo (em esfera municipal, estadual e federal) costumam supor, inadvertidamente, ao montar seus governos, que a gestão da pasta ambiental não exige formação especializada.

É provável que o equívoco tenha origem em reivindicações do próprio movimento ambientalista, que ainda hoje considera que o cargo de analista ambiental pode ser exercido por qualquer profissional de nível superior.

Não à toa, concursos realizados por Ibama e ICMBio (para ficar apenas na alçada federal) não exigem graduação em cursos correlatos à área do meio ambiente, tais como engenharia florestal e biologia.

Por consequência, e mesmo passando por um período preparatório dispendioso, os aprovados, de maneira geral, não têm a qualificação necessária para atuar no diagnóstico dos impactos ambientais e na elaboração de pareceres técnicos complexos.

Nada mais paradoxal que a deficiência técnica que se constata na atuação dos órgãos ambientais na Amazônia.

É fato que a engenharia florestal habilita o profissional para o manejo da biodiversidade florestal. Também é fato que, na Amazônia, mais da metade das atribuições dos órgãos ambientais está relacionada ao tema das florestas.

Contudo, pode-se dizer – sem querer ser preciso – que de cada 10 técnicos de nível superior, no máximo 2 são engenheiros florestais, sendo que os 8 restantes não são qualificados para atender à demanda do órgão, já que o concurso que prestaram não exigiu essa capacitação.

No caso dos analistas do ICMBio, instituto responsável pela gestão de reservas extrativistas e parques nacionais, é imprescindível que possuam noções mínimas de política ambiental e, por conseguinte, logrem discernir as linhas conceituais que permeiam o assunto, a saber, conservacionismo e preservacionismo.

Afinal, as duas vertentes estão no centro dos preceitos discutidos e estabelecidos no âmbito do Acordo de Paris, o mais amplo e mais sólido pacto ambiental já celebrado pelos países associados à ONU.

A título de esclarecimento, destaque-se que os adeptos do preservacionismo defendem a criação de unidades de conservação de proteção integral, onde não é permitida a presença humana, na condição de principal mecanismo para a obtenção da sustentabilidade no crescimento econômico da Amazônia.

Na visão preservacionista, a segregação de áreas de proteção integral contrabalançaria os impactos observados no restante do território – decorrentes da substituição da biodiversidade florestal por áreas de cultivo/pastagem – e asseguraria um suposto equilíbrio ecológico.

Para os adeptos do conservacionismo, por outro lado, a sustentabilidade só será alcançada mediante o manejo e a inserção da biodiversidade no sistema econômico – não sendo aceitável, portanto, a conversão do ecossistema florestal em pasto.

Dessa forma, como proposta adequada para a conquista da sustentabilidade, defendem a criação de unidades de conservação de uso sustentável, como reservas extrativistas.

Guardando afinidade com um ou outro pensamento, obras clássicas estudadas por técnicos e pesquisadores discutem o desenvolvimento sustentável abordando a relação entre crescimento demográfico/oferta de alimentos/biodiversidade florestal.

Complementa a formação na área ambiental conhecimento básico em torno da questão das desigualdades regionais, sobretudo as alusivas aos níveis de consumo dos países do Norte e do Sul, e que respaldaram os termos convencionados no Acordo de Paris.

Por fim, os analistas do ICMBio devem forçosamente saber distinguir os instrumentos de gestão ambiental, tanto os inseridos no princípio do poluidor/pagador quanto os inerentes ao princípio do comando/controle – tendo em vista que esses instrumentos são referência para a execução da Política Nacional de Meio Ambiente.

Muitos preferem politizar o recorrente fracasso em zerar o desmatamento na Amazônia, mas uma coisa é certa: não é empreitada para amadores.

 

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.